quinta-feira, 8 de agosto de 2024

Parentalidade: um empréstimo do corpo e da vida na geração de uma outra vida autónoma




Há umas semanas atrás, tive um sonho que me impactou bastante. Inclusivamente chorei no sonho e acho que na realidade também, pois, embora não tenha despertado totalmente, tenho esta memória tipo "flash back" de saber que estava na cama, e saber que estava a dormir, mas sentir-me extremamente triste e estar a soluçar.

O sonho era muito simples - ou melhor, a parte que me lembro. De repente, a Lia já tinha uns 15 anos. E eu chorava porque tinham passado 9 anos em que não a tinha visto, e a última memória que tinha dela, era com a idade que tem agora 4 anos. 

E inclusivamente, esta imagem muito vívida da cara dela aos 4 anos, que era especificamente a imagem da cara dela nessa mesma noite em que nos estávamos a despedir para ir dormir, e aproveitei um tempinho (raro) em que ela estava quieta e eu estava só a olhar para ela.

E, nesse sonho, lembro-me de chegar a ela com 15 anos e perguntar estas exatas palavras "onde está a carinha laroca dos 4 anos?"

E chorei, chorei, chorei. Senti-me mesmo triste porque tinha "missed out on something". Nessa manhã, ao acordá-la senti-me diferente porque ainda estava impactada com o sonho. Não a conseguia largar, nem queria ir a lado nenhum, só queria ficar ali deitada com ela.

Claro que depois analisei este sonho. Tentei lembrar-me de mais detalhes ou até buscar um significado.

O que me leva a escrever isto é o querer partilhar uma reflexão que tenho várias vezes: ela não é minha. Sei que por uma questão de conveniência linguística, dizemos "minha filha", mas ela não é minha. Ela é do mundo. E eu sou apenas um veículo para a expressão dela própria no mundo.

E cada vez mais tenho esta visão da parentalidade: nós apenas emprestamos os nossos corpos (e em particular para as mães, que emprestam o seu corpo para a geração e alimentação nos primeiros anos dos bebés) e (grande) parte das nossas vidas para colocarmos estas outras vidas, autónomas, no mundo. Eu não tinha esta noção antes de ser mãe, mas acho que qualquer pessoa deveria refletir nisto antes de tomar essa decisão.

Penso que parte deste sonho tenha sido uma manifestação de um medo profundo que tenho, e ao mesmo tempo uma tristeza pela certeza de que isto vai acontecer: um dia, ela irá "embora". Um dia, ela vai querer ir embora; vai querer ter distância de mim e isso é normal, também o senti. Um dia, não terei mais de emprestar tanto da minha vida e dar tanto de mim na criação dela. E se todos os dias vivo este paradoxo - sinto-me cansada quando ela está acordada porque requer imensa atenção e disciplina e etc., e depois morro de saudades quando ela está a dormir - sei que tudo isto é passageiro. E o passageiro aqui ainda são uns anos valentes, mas lá no fundo sei que é passageiro. E que, gradualmente, cada vez menos ela precisará de mim. E ainda bem!

A parentalidade é todo um tema para mim, fonte de amor e desamor, tanto enquanto filha como enquanto mãe. E esta noção certa de que ela não é minha, mas do mundo, me faz querer dar-lhe gradualmente mais autonomia, para que ela um dia se queira livrar de mim e se livre de mim, sem cair na tentação de entrar em dinâmicas de cobranças desnecessárias, irreais, e de todo não legítimas. 

Quando me perguntam o que mudou na minha vida desde que fui mãe, as respostas podem ser várias, mas a primeira que me vem à mente é, invariavelmente, esta: mudei também enquanto filha. Com a minha mãe, percebi que tinha de enfrentar todo o ressentimento que sentia e a culpa de me ter permitido finalmente não manter uma relação com ela, por necessidade de auto-preservação (afastamento/corte esse que queria há muitos e muitos anos mas que nunca tinha tido coragem para dar esse passo). Com o meu pai, apesar de manter o maior respeito e gratidão da vida por ele, desvaneceu-se uma culpa que sentia de não estar sempre a ligar para ele, ou estar sempre a intrometer-me na vida dele, ou estar sempre a querer salvá-lo (sim, porque eu tinha esta coisa de querer salvá-lo por sentir que as partes más da vida dele eram culpa minha). E sobretudo neste último caso, percebi que não tinha mais de carregar esse peso da culpa e da cobrança, precisamente porque no papel de mãe, entendo com a maior clareza que isso nunca é exigível da minha filha, que nunca será legítimo eu fazê-lo, e o quão importante é ter esta noção clara de que sim, estou aqui para ela, quero ser tudo para ela, "empresto" de bom grado e com o maior amor grande parte da minha vida para que ela um dia ganhe asas e nunca sinta qualquer tipo de peso ou responsabilidade perante mim, porque ela apenas será responsável por ela própria, nunca por mim. Eu serei sempre responsável por mim, não pelos meus pais (e o tempo que demorei a entender isso!), e por isso também insisto em manter uma parte de mim que está acima de qualquer outro papel social ou familiar, incluindo o de ser mãe, porque sei que tenho de me bastar a mim mesma, sem esperar que, lá porque tive filhos, eles têm de cuidar de mim futuramente. E criar essa expectativa (e.g. "quando for velhinha, os meus filhos têm de cuidar de mim") é algo que nos magoa tanto a nós quanto coloca um peso neles.

Acho mesmo importante refletir sobre este tema, esta distinção entre o ter filhos e eles serem nossos ou do mundo. Claramente não são nossos. Claramente são do mundo, ou deles próprios. Claramente, colocar-lhes a responsabilidade de terem de X ou Y "só porque são pais", "só porque são filhos", não se encaixa com a minha visão de mundo, nem enquanto filha, nem enquanto mãe. 

O meu objetivo último enquanto mãe é dar-lhe asas para voar e para regressar sempre que queira. Claro que há um laço afetivo que, pelo menos pela minha parte, será inquebrável para sempre. Ela será sempre a pessoa mais importante para mim. Mas esse laço afetivo não tem, nem deve, traduzir-se em exigências que lhe roubem a essência dela própria em prol de qualquer obrigação moral por mim fantasiada.

Sobre as dinâmicas entre pais e filhos, deixo aqui um trecho do livro "Ordens do Amor", de Bert Hellinger, que me tocou profundamente:

"Os pais dão e os filhos recebem. Esta é a ordem natural. Quando os filhos querem dar aos pais na mesma medida que receberam, ou quando os pais querem receber dos filhos como se fossem seus filhos, a ordem natural se inverte, e isso traz consequências. (sim, eu vivi isto durante muitos anos, uma força dentro de mim que me queria fazer retribuir tudo o que os meus pais me tinham dado, tentativa sempre frustrada por perceber que nunca iria conseguir, na minha vida toda, fazê-lo).

O dar e o tomar entre pais e filhos segue um princípio diferente do que ocorre entre adultos. Os pais dão aos filhos a vida, e isso é algo tão grande que nunca pode ser retribuído. Os filhos, por sua vez, tomam dos pais e reconhecem a grandeza desse dom, o que lhes permite crescer e se desenvolver. Quando os filhos tentam retribuir aos pais, eles tomam para si um fardo que não lhes pertence. Em vez disso, eles devem passar adiante o que receberam, ou seja, dar aos seus próprios filhos, se tiverem, ou contribuir para a vida de outras formas. (sim, eu vivi durante imenso tempo com este fardo e sinto que finalmente me libertei disso, e isto nada tem a ver com o amor que sinto por eles, e sim aqui incluo os dois, porque sinto amor pelos dois, embora tenha de ter cortado relações com um deles).

Essa ordem no dar e tomar se manifesta em muitas áreas da vida familiar e é essencial para o equilíbrio e a harmonia dentro da família. Quando os filhos aceitam o que receberam dos pais com gratidão e usam isso para avançar em suas vidas, eles honram os pais e respeitam a ordem natural. Quando os pais permitem que os filhos sigam em frente e usem seus dons, eles também respeitam essa ordem e promovem o bem-estar de todos."

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