quarta-feira, 28 de agosto de 2024

Utopia para Realistas

Acabei ontem de ler um livro, Utopia para Realistas, de Rutger Bregman, onde essencialmente ele propõe que o futuro da humanidade, falando em termos socio-económicos, caminhará para um rendimento básico universal sem condições (a toda a gente, independentemente do estrato social ou ocupação ou qualquer outro fator), semanas de trabalho de 15 horas (porque a produtividade maior será resultado do trabalho de robots, máquinas e IA, aquilo a que ele chama de era de nova escravidão das máquinas perante o Homem, em que a máquina trabalha para as pessoas terem mais tempo livre), e open boarders, ou seja, a eliminação de países e continentes, havendo uma globalização total, no sentido mais lato da palavra.


(imagem retirada daqui)

O que parece hoje uma utopia, ele advoga, não é assim tão impensável ou inconcebível no longo prazo, uma vez que - e ele começa precisamente por construir o seu caso à volta disto - a vida que a maioria de nós vive hoje é uma utopia para os nossos antepassados, não tão longíquos assim (e sim, sei que falo do alto do meu previlégio aqui).

Este post não é para resumir o livro (embora recomende bastante a sua leitura), nem se concordo ou não com o que ele propõe (até concordo mas não acho muito exequível em bastantes aspectos, daí ser utópico), mas para me focar num ponto específico, que achei muito interessante.

Já vivemos numa Utopia (ou, pelo menos, muitos de nós)

Ele começa por descrever que, nos tempos medievais, havia uma fantasia coletiva, que se chamava Land of Plenty, algo como a Terra da Abundância, onde, contrariamente às condições de vida paupérrimas em que vivia 99,9% da população, fantasiavam com a vida que temos atualmente (repito, falo a partir do meu lugar de previlégio, disclaimer): alojamento seguro, comida disponível 24/7, acesso a água e eletricidade, acesso a emprego, a cuidados de saúde, toda uma míriade de coisas que consideramos comuns e quase garantidas, como água potável, eletricidade, cuidados médicos e alimentos variados, que eram luxos inconcebíveis na Idade Média. Já para não falar na tecnologia e conveniências afins que temos hoje em dia (por exemplo, alguma vez alguma dona de casa nos anos 50 sonhava com um aspirador robot ou um robot de cozinha? e, no entanto, isso para mim é totalmente um dado adquirido).

Ou seja, em comparação com as condições de vida durante a Idade Média, o mundo moderno oferece um nível de riqueza e bem-estar que seria inimaginável para as pessoas daquela época. Inclusivamente, ao falar com um amigo sobre este livro, ele afirmou "hoje em dia qualquer pessoa de classe até média-baixa tem uma maior nível de vida do que os reis de há não muito tempo atrás".

E isto realmente fez-me ficar a refletir em algo que é tão simples, que é tão básico, que é tão óbvio e que nos passa tanto ao lado: nós já vivemos numa utopia. Eu, pelo menos, considero que em muitos aspetos vivo numa utopia. Eu vivo a vida que quero a 90% e sinto que ainda trabalho os outros 10% para aperfeiçoar, mas que não estou muito longe do que ambiciono (também é bastante simples o que ambiciono, portanto não é difícil). E o facto de poder estar aqui a ler, pensar e escrever sobre estes temas, sabendo que tenho subsistência assegurada, que tenho emprego, que tenho rede de segurança, que daqui a bocado vou almoçar e já tenho a comida garantida, que depois vou para casa no conforto do meu carro sem preocupações, etc.) já é um enorme previlégio. Inclusivamente, depois do tremor de terra de há dois dias, que não foi destrutivo mas chegou para assustar, tive o pensamento de que felizmente, se a coisa fosse destrutiva mas eu sobrevivesse mas ficasse sem casa, não ficaria na rua. Tinha alternativas. E só o facto de ter alternativas, de ter escolhas, opções - sim, no plural - já é uma enorme riqueza que na maior parte do tempo dou como garantida, mas que acho importante relembrar-me com frequência. 

Aliás, na comunidade FIRE, onde muito se fala de (e eu não podia concordar mais com esta ideia) a verdadeira riqueza é a liberdade de tempo e de escolhas, isto fica ainda mais claro. Eu quero atingir o FIRE, eu quero ser ainda mais livre de tempo e de opções, mas não posso ignorar toda a abundância de escolhas e opções que já posso fazer HOJE. É um pouco aquele conceito de ser HOJE o que já queremos ser amanhã.


Lutar por algo melhor a partir de um lugar de suficiência, não de escassez

Isto não significa que nos devemos resignar às circunstâncias e nunca lutar por algo melhor, quer seja pela nossa vida individual, quer seja pela coletiva (porque desigualdades e pobreza sempre existiram e sempre existirão, embora este autor proponha que estas 3 medidas iriam erradicar tudo isso, mas daí ser um bocado utópico). Mas essa ida em busca de algo ainda melhor e até utópico não deve partir de um lugar de escassez, de "não tenho ainda o suficiente"; muito pelo contrário, deve já partir de um lugar de suficiência e gratidão

O parar para apreciar o que já tenho, é um exercício incrível e que já me faz sentir incrivelmente abundante. No sentido em que, se não conseguisse "evoluir" mais nada a partir de hoje, seria triste, ficaria com a sensação de algo por concretizar, sim, mas seria feliz na mesma com o hoje. E por isso mesmo há uma parte de mim que se sente até um pouco irritada quando vejo pessoas mais ou menos com o mesmo nível de vida que eu, a queixarem-se de que está sempre tudo mal, nunca colocando o mínimo de foco no que na vida delas já é uma garantia que muitas pessoas no passado não tiveram e nem mesmo hoje ainda têm. Bem entendo que é do ser humano nunca estar satisfeito. Chegas a um patamar e já estás a pensar no próximo. Isso é normal e necessário para a evolução. Mas é também importante celebrar os patamares aos quais chegamos, às metas que estabelecemos e vamos atingindo, e saber apreciá-los, falando quer a nível individual, quer coletivo (e sobretudo no coletivo, em que muitas benesses que temos são resultado de lutas passadas!).

Concluíndo

Ao refletir sobre a "Land of Plenty" em que vivemos hoje, especialmente em comparação com os tempos medievais, e a forma como isto é descrito no livro, é impossível não sentir um profundo senso de privilégio e gratidão. Ter a consciência da sorte que tenho em poder desfrutar de comodidades e oportunidades que eram inimagináveis para os nossos antepassados. O conforto material, o acesso à saúde, à educação e às tecnologias que facilitam a vida são aspectos que não posso considerar garantidos, embora essa seja a tendência. Só quando abrimos a torneira e não sai água pensamos nisso. E especialmente, quando ligamos os dados móveis e não dá, ou o wifi não funciona, é também todo um outro "problema" totalmente de primeiro mundo :P

Ser grata por tudo o que já tenho e usar isso como trampolim para o que ainda quero alcançar é, portanto, um ato de reconhecimento, de respeito para com a vida e, sobretudo, humildade.

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