domingo, 4 de agosto de 2024

Dinheiro - Parte I - Relação tóxica

 

Acho que se fala pouco sobre dinheiro, e o que se fala, fala-se mal. Existe esta crença generalizada de que alguém que goste de dinheiro é uma pessoa gananciosa, quem tem dinheiro é uma pessoa má, que se o ganhou com trabalho de certeza que fez algo de errado pelo caminho, ou se é rico por herança isso de alguma forma tem menos valor. Que existe mais sorte que mérito. 

    O dinheiro é uma ferramenta fantástica. Não, o dinheiro não traz a felicidade em si, mas não me venham com tretas: ajuda, e muito. 

 


 

    Fica bonito dizer que "há coisas mais importantes que o dinheiro", claro que há, mas talvez o dinheiro ajude a chegar a essas coisas importantes. "Ah mas a saúde é mais importante que o dinheiro"; claro que é! Mas desde quando uma coisa invalida a outra?! Ter saúde implica não ter dinheiro, ou vice versa? De qualquer forma, entre estar doente mas ter dinheiro para ter acesso aos melhores tratamentos de saúde ou ter de, pelo contrário, ficar em lista de espera para uma cirurgia que seja muito necessária ou contar os tostões para comprar medicação que seja precisa tomar... Acho que a escolha é óbvia. 

 

    No fundo, o dinheiro é uma forma de vivermos a vida que queremos. De poder viver a vida COMO queremos. Na saúde ou na doença!

 

    A frase "o dinheiro não traz felicidade" tem muito que se lhe diga. Eu discordo bastante dessa frase. Pode não trazer diretamente, mas traz: qualidade de vida, conforto e mais possibilidades de poder fazer o que nos faz feliz. Traz mais liberdade de tempo, de escolhas. Então, o dinheiro não compra a felicidade diretamente, mas compra as condições que nos podem fazer felizes. Não compra as pessoas nem o amor delas... Mas também não acredito na história do amor e uma cabana! Não acho que se possa ser feliz ao lado de uma pessoa se constantemente se tem de viver com desafios financeiros! E uma pessoa pode ter amizades bonitas e verdadeiras mas se estiver constantemente struggling com condições financeiras, continua a não ser propriamente feliz.

 

    Ao longo dos últimos anos, tenho trabalhado bastante na minha mentalidade acerca do dinheiro e hoje vejo que, aos poucos, percorri um grande caminho e que já fiz algumas conquistas em relação à minha forma de pensar, ser e estar sobre o tema. 

 

    Eu tinha muitos bloqueios em relação a isto. Cresci e fui educada com coisas do género: para ganhares algum dinheiro tens que te matar a trabalhar, dia e noite; dinheiro ganho sem ser com sacrifício extremo é dinheiro do mal como se estivesse envenenado ou não fosse de forma alguma merecido; poupar só não chega, é necessário ser forreta ao máximo, mesmo que se passe necessidades básicas; guarda o dinheiro debaixo do colchão (literalmente); tudo o que me dessem ou fizessem por mim iria ser cobrado até ao fim dos meus dias. E sim, ainda hoje o é. Ainda hoje eu sofro da eterna cobrança. Só que percebi que não posso mudar isso - o facto de me cobrarem coisas ou condições que me deram sem eu ter pedido, ou seja, ser cobrada por coisas que eu não escolhi, ainda que me beneficiassem. Visto que não conseguia mudar isso, mudei então a minha mentalidade em relação a isso. 

 

    E portanto eu cresci a acreditar piamente que o facto de nunca me ter faltado nada tinha alguma "culpa". Eu senti-me culpada por, apesar de estar longeeeeee (muito longe) de ser rica, mas não tinha de trabalhar desde criança, como eles, para ter comida na mesa. Era um privilégio. Por isso deveria ajoelhar-me quase e nunca aspirar a mais do que o básico, e mesmo para ter o básico deveria trabalhar dia e noite. Só assim é que tinha valor. 

 

    Esta foi a educação que os meus pais tiveram, das experiências que eles viveram, eram as crenças deles e que naturalmente passaram para mim. Ainda bem que algum dia consegui ter o discernimento de perceber que havia muitas coisas erradas nessa lógica e que comecei a trilhar o meu caminho, diferente, nessas questões. 

 

    Cresci então sempre com estes sentimentos de culpa e de cobrança,essencialmente. Eu tinha dificuldade em aceitar ajuda de quem quer que fosse. Achava que me iam cobrar aquele 1€ que eu tinha pedido emprestado para comprar uma pastilha na escola, e ficava obcecada em devolver. Apesar disso ter o seu lado bom - fiquei completamente avessa a dívidas más, nunca contraí créditos nem nunca fiquei a dever dinheiro a ninguém, para além de evitar ao máximo sequer pedir - era num grau que chegava a ser extremo e tóxico. Não tem mal nenhum receber ajuda, seja ela pedida ou não. Esse foi o primeiro desbloqueio. Hoje somos nós ajudados, amanhã ajudamos nós, é um ciclo. Não temos de ser constantemente cobrados nem estar sempre a cobrar dos outros. 

 

    Mas ainda antes destes desbloqueios, tive uma fase muito consumista, fruto da frugalidade excessiva com a qual cresci. Eu nunca tinha roupa nem brinquedos novos. Ou era raro. Vá, também não quero ser injusta, tinha algumas coisas Sim. Mas sempre acompanhado do "nem sabes o quanto tive de trabalhar e passar fome para teres essa mochila". Outra vez o sentimento de culpa, de cobrança. Sempre aquele tom de "isso é um luxo e serás para sempre cobrada por isso". Mesmo que não fosse propositado, era essa a mensagem quase subliminar. 

 

    E eu cresci sempre a acreditar que não merecia nada. A vasta maioria da roupa que tinha era em terceira mão, passada pelas minhas primas ou filhas dos amigos. Achava que não podia ter nada de novo. Que para ter algo de novo era preciso alguém sofrer muito e eu não queria ter essa responsabilidade, esse peso. Só que tinha. 

 

    Para piorar, eu cresci rodeada de pessoas ricas. Andei em colégios privados desde a primária até ao secundário. Talvez por esse peso financeiro, não havia espaço para o resto? Aliás até mesmo por isso eu era cobrada. Porque me davam condições para ter uma educação de excelência, mas isso significava sacrifício extremo e eu sentia-me culpada por isso. Extremamente culpada. Aliás, ainda hoje sinto. 

 

    Mas continuando, cresci a ver isto: todos os meus colegas tinham a roupa e a mochila e o material escolar e os brinquedos mais in e mais na moda e mais no momento. E eu só tinha coisas velhas da década anterior e que já tinham sido usadas por 2 pessoas antes de mim. 

 

    E eu era excluída por isso. Naquele meio contava muito a aparência e nisso eu perdia aos pontos. Não ajudava o facto de eu ser tímida e introvertida, mas como também não tinha a mochila da Eastpak ou a camisola da gap, já era posta de parte. Isso fez crescer em mim uma coisa muito feia: inveja. Inveja e revolta. 

 

    Há um episódio do qual nunca mais me vou esquecer. Tinha uma amiga que era rica. Ou, vá, agora olhando para trás ela não era rica, mas aos meus olhos naquela altura era, porque ela tinha imensos brinquedos e isso era a minha definição, na altura, de ser "rica". Tinha imensos brinquedos, e novos, e eu ia a casa dela brincar. Quando voltava para a minha, não tinha nada. Tinha pouco e nem sequer era o que eu queria, era o que alguém podia doar-me que já tinha sido usado. Atenção, nada contra as coisas em segunda mão, nada mesmo! Mas quando é TUDO assim e mesmo ao lado tens uma amiga que tem tudo o que quer e novo, como é que uma criança de 8, 9 ou 10 anos encara isso?? Enfim, um dia, tal era a inveja, comecei a roubar-lhe brinquedos. Fui levando um e depois outro e depois mais outro. E ela nem sequer dava por falta deles, tal era a quantidade de brinquedos que ela tinha. Levei um monte deles para casa e brincava com eles. 

 

    Um dia, tinha uns 9 ou 10 anos e deu-me um ataque de consciência! Sabia que aquilo era errado. Meti os brinquedos todos num saco e levei num dos dias que fui a casa dela e, sem ela perceber, tirei os brinquedos do saco e pu-los lá no meio das centenas de outros. Nem sei se ela algum dia percebeu isso. 

 

    Nunca mais, mesmo, me vou esquecer disto: a inveja que eu tinha dela, e a crise de consciência que me deu naquela altura por essa inveja me ter levado a roubar. 

 

    E portanto sempre cresci com esta imenso sentimento de falta de merecimento. Sentia que não merecia nada e que se tivesse direito a alguma coisa boa isso era sinónimo do sofrimento de alguém (os meus pais) e que eu era culpada disso. Os meus pais só me queriam mostrar o valor das coisas, mas acabou por ter um efeito nefasto, porque era em excesso.

 

    Dado ter crescido com este sentimento de escassez, de falta de merecimento e de frugalidade excessiva (frugalidade é bom, hoje vejo isso, mas como em tudo, quando é demais é mau), tive uma fase extremamente consumista na minha vida. Quando comecei a ter alguns trabalhos na adolescência, ganhava e gastava tudo em roupa e saídas e coisas supérfluas que não me serviam para absolutamente nada. Só pare preencher aquele vazio de nunca ter tido acesso àquelas coisas. Gastava 200€ na Primark como se fosse tomar um café! Hoje percebo que ter dinheiro não é bom para ter mais roupa ou mais bibelots em cima dos móveis (Deusmalivre, bibelots! Quanto menos tralha, melhor!!!); mas, na altura, foi a minha forma de pensar e agir, para compensar. Tinha excesso de coisas que não precisava mas continua a comprá-las porque me fazia sentir bem.

 

    Isto tudo era muito off, mesmo. E quando ganhei alguma maturidade emocional, comecei a perceber que esses sentimentos e comportamentos eram tóxicos e que tinha de fazer algo para os mudar. Os sentimentos, não as pessoas ou os acontecimentos em si. E, aos poucos, fui conseguindo! 

 

    (Agora que li tudo o que escrevi até agora, parece que estou a desdenhar os meus pais. Não estou. Não é de todo a minha intenção. Eles fizeram o melhor com o que tinham e como sabiam, cometeram estes erros. Eu como mãe de certeza que cometo e cometerei outros. É normal. Mas não tira o peso que todos acabamos por carregar. E este que falo aqui é um deles. Um dos que mais carreguei e ainda carrego, apesar de aos poucos estar a conseguir descarregá-lo.) 

 

    Como encaro hoje as questões do dinheiro, da independência, da frugalidade, do consumismo, do ajudar ou ser ajudada, das cobranças, dos investimentos, e tudo isso?

 

    Fica para um outro post, que este já vai longo :P

 

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