domingo, 4 de agosto de 2024

A Libertação da Alma (livro) / Sonhos Lúcidos na Realidade / Somos consciência pura encarnada em personagens

 

A Libertação da Alma - Michael Singer




Este é um dos melhores livros de "auto-ajuda" que li até hoje. Apesar dos conceitos em si serem "populares" no mundo do desenvolvimento pessoal, mas sobretudo espiritual, este livro realmente vai a sítios mais profundos e fornece-nos material "food for thought" não tão imediato de integrar como outras obras, talvez mais pragmáticas. 

Tinha tanto para dizer, mas confesso que ainda estou a processar. 😂

Vou tentar resumir a(s) proposta(s) do autor e depois as minhas reflexões / críticas.

A ideia base é esta: nós não somos nada daquilo que acreditamos ser. Afinal, o que é aquilo em que acreditamos ser? Na realidade, nós somos uma uma matéria inteligível, a um nível muito inconsciente, ao qual a vasta maioria das pessoas não consegue aceder porque não tem consciência de que é a sua própria consciência e não as personas que encarna, nem os estados mentais/emocionais/cognitivos que vive, na realidade o Ser não é nada daquilo que vive ou que faz ou lhe acontece. 

A proposta dele, de uma forma muito simples, é de que quem o "eu" realmente é, é aquele que VÊ, aquele que observa todas essas coisas. O ser é simplesmente o ser e tudo o resto são "smoking mirrors".

1 - O Despertar da Consciência

O ato de estar ciente de estar ciente é uma espécie de porta de entrada. Um momento "aha!". É extremamente difícil integrar este conceito, porque estamos tão embrenhados e tão dentro de tudo aquilo que nos rodeia e daquilo que rodeia  nossa psique e tudo a construção interior que temos. Mas o estar ciente de que é possível estar ciente de estar ciente é completamente life-changing para começar. É onde começamos a conhecer o nosso Eu Lúcido.

Se realmente pararmos para refletir sobre isto, facilmente concluímos que realmente não somos nada da dança constante de pensamentos e emoções que acontecem na nossa cabeça. Tudo isso é simplesmente a mente. Nós não somos a nossa mente. Nós somos aquele ser silencioso que está por detrás da mente. Somos aquele que vê a nossa mente.

No fundo, eu equiparo estas ideias a ter sonhos lúcidos. Quando estamos a sonhar e nos apercebemos que estamos a sonhar. Conseguimos literalmente ver o sonho. Aí, temos duas escolhas. Ou começamos a controlar o sonho, ou deixamos o sonho fluir.

(Ter sonhos lúcidos é ótimo e é uma coisa treinável. Já tive vários, mas não é fácil conseguir fazê-lo).

Da mesma forma, pode-se dizer que é como ver um filme. É como ver um filme da nossa própria vida. O "eu" verdadeiro é o mero espectador. Tudo o resto é encenação.

 

2 - O Apego

O autor também defende que a raíz dos nossos maiores problemas de psique, das nossas inquietações e desassossegos internos e daquilo que nós apelidamos de problemas (dando-lhes logo uma conotação negativa, quando um problema é simplesmente um facto ou acontecimento) é o nosso apego a elas.

Apegamo-nos a esta ideia do eu. Eu sou, eu não sou, eu gosto, eu não gosto, eu faço, eu não faço. Estas ideias basilares refletem-se depois no mundo externo, o julgamento externo começa no julgamento interno. Apegamo-nos às ideias do que são coisas boas ou más, fechamo-nos sobre elas e construímos paredes à volta delas.

No fundo, criamos uma identidade e apegamo-nos a ela, da mesma forma que criamos uma ideia do mundo e nos apegamos a ela. 

Este apego bloqueia a nossa intuição. Se pensarmos em intuição, o que é? É o "eu", aquele que está por detrás da mente, aquele que não fala nem pensa por palavras, mas que diz tudo o que importa. Tantas vezes calamos e ignoramos essa intuição do "eu" porque estamos demasiado envolvidos nos enredos da mente, nas crenças e em tudo o mais que compõe esse universo.

 

3 - A Libertação

 

O argumento aqui é de que todas aquelas ideias estão erradas. E aqui posso perguntar-me "mas quem acha que tudo isso está errado? Está mesmo errado, ou é a mente do autor que pensa que isso está errado? Será que ele observa que ele não é as ideias que põe no livro, mas sim o sujeito que observa essas mesmas ideias?". E aqui começa o meu questionamento acerca do livro.

O que ele defende é que a verdadeira paz interior é o libertar de tudo isso. Começar por estar ciente de que se está ciente e trabalhar nesse processo a um ponto em que atingimos uma profunda compreensão de que tudo isso são objetos que nós observamos enquanto sujeitos. Não são verdades absolutas, são as nossas verdades.

No fundo, é conseguirmos sair de nós mesmos e do teatro que é a nossa cabeça.

Da mesma forma que num sonho lúcido conseguimos olhar e dizer "espera aí, eu estou a sonhar, mas eu não sou isto, eu estou deitada na minha cama a dormir e isto está a acontecer, só que eu agora apercebi-me de que isto está a acontecer". Ou da mesma forma como quando assistimos a uma discussão, pensamos "aquelas pessoas estão a discutir, eu não estou no meio do conflito, eu só estou a assistir". É a aplicação desta mesma lógica mas para com a nossa mente. Não somos a nossa mente, somos espectadores da nossa mente e de todos os pensamentos e de todas as milhentas vozes que discutem entre si e que criam esse enredo e melodrama. A proposta é libertarmo-nos desse melodrama pela via da auto-observação.

 

4 - A Dor e o Desconforto

Now let it sink in.

O estar ciente de tudo isto provoca dor e desconforto porque desafia absolutamente tudo aquilo em que acreditávamos até àquele ponto, portanto abala com a nossa estrutura a que cremos ser sólida e afinal não é. O aceitar e deixar passar essa dor e desconforto faz parte do processo. A maior parte das nossas dores vêm do apego aos nossos medos. Temos medos, que surgem mascarados de várias formas, como ansiedade, por exemplo, e vivemos em função disso.

Para conseguirmos evoluir, temos de reconhecer e enfrentar isso, passar para além do medo, como atravessando uma onda.

Estando consciente de tudo isto, é possível, a cada situação, a cada acontecimento, a cada estímulo, seja ele interno ou externo, tentar responder às questões "qual é a minha reação? Qual é o meu medo? Porque estou a reagir assim? Porque me observo a reagir assim? Porque me observo a criar isto, a acreditar nisto?". Isto é extremamente desconfortável, quando feito com intenção verdadeira. Se o fizermos muitas vezes, eventualmente deixa de doer tanto, porque vamos também trabalhando no processo o nosso medo dessa dor.




5 - Tudo é energia, deixar e energia fluir

Absolutamente tudo o que é bom ou mau - aquilo que nós, enquanto sujeitos, observamos e acreditamos ser bom ou mau - é energia. A maior parte dos"objetos" que passam por nós no quotidiano, nem conseguimos estar atentos. Quando estamos, por exemplo, a conduzir numa estrada, a nossa mente apenas consegue estar atenta a uma reduzida percentagem de todos os estímulos exteriores. É uma característica evolutiva que nos permite sobreviver. O mesmo acontece com emoções, pensamentos, experiências, "problemas", pessoas, crenças, etc. Tudo isto são objetos que nós experienciamos enquanto sujeitos. 

Agora, algumas destas coisas (a maioria) flui, entra e sai do nosso corpo, mas algumas ficam bloqueadas. E são essas coisas que não libertamos (o tal apego) que faz com que surjam inquietações de natureza mental. No fundo, todas as doenças mentais podem ter raíz neste fenómeno humano, de formas mais ou menos complexas, com menor ou maior profundidade.

A tese dele é que é fundamental identificar, processar e deixar essas energias fluir e saírem do corpo. Uma espécie de rendição = libertação. Abrindo mão da falsa solidez em que acreditamos.

 

6 - A verdadeira libertação e a felicidade incondicional

O desafio - e argumenta dele que é este o estado mais puro que nos permite encontrar a verdadeira paz interior e felicidade incondicional - é estar nesse estado de consciência permanentemente. Aquilo a que o Budismo chama de Nirvana.

Eu já tive glimpses disto. É um estado atingível na meditação e que eu particularmente já tive com experiências transcandentais. É realmente uma libertação completamente inexplicável, uma coisa que simplesmente "sabemos", porque acedemos a esse "eu", é uma sensação de ser tudo e nada ao mesmo tempo, inenarrável. É como uma energia que sai do corpo e literalmente conseguimos realmente vê-la a ela e ver-nos a nós e perceber que a nossa maior prisão, a nossa maior gaiola, somos nós mesmos. É como aquele velha dilema filosófico: "se uma árvore cair no meio da floresta e ninguém vir esse acontecimento, será que aconteceu mesmo?"

Requer um sujeito para observar um objeto, e o objeto e o sujeito não são a mesma coisa, são divisíveis. Este distinguir, esta realização... É isso.

 




Aplicações & Críticas

Este livro foi muito "wow" para mim. Tive vários momentos em que senti o meu corpo a reagir, literalmente, ao ler algumas das partes. É realmente mindblowing.

Agora, algumas "críticas":

1 - falta de praticabilidade, foco no resultado final e não no processo. A meu ver, é um livro mais teórico, conceptual, exotérico, mais para refletir, mas faltam exemplos de aplicabilidade real no dia-a-dia. Porque sim, a um nível teórico tudo isto faz tanto sentido, no entanto, como aplicar no dia-a-dia? Também há muito foco no resultado de "conseguir atingir esse estado", e não tanto na beleza do processo de tentar lá chegar, ou chegar a algum tipo de compreensão que fique mais ou menos perto.

2 - subvalorização da utilidade e funcionalismo dos modelos mentais e da identidade. Sim, a ideia de que não somos nada daquilo que pensamos - porque só o ato de pensar é já toda uma encenação, e o verdadeiro "eu" é aquele que observa todos esses modelos mentais, que o autor argumenta que devemos deixar cair. No entanto, e porque eu estudei psicologia durante 5 anos, apresento o meu ponto crítico aqui, é que tudo isso tem uma função social e de sobrevivência. Quem seríamos nós sem todos esses modelos mentais, sem essas construções? Quem seríamos nós sem o nosso senso de identidade? O mundo tornar-se-ia numa anarquiaSim, precisamos de ordem, precisamos de heurísticas, precisamos de colocar o caos em alguma espécie de ordem, em nome da sobrevivência. Se todos os seres humanos se rendessem ao puro "eu", aquele sujeito que observa tudo isso mas que deixa de o ser, o mundo não seria como é, talvez fosse algo diferente, talvez fosse algo "melhor" ou "pior", talvez não existisse mundo, sei lá. Ninguém sabe. Este ponto já abre toda uma outra discussão filosófica.

3 - então e os "objetos bons"? O autor foca-se na questão dos problemas psíquicos serem energias negativas bloqueadas e o caminho de solução ser a rendição, o deixar ir, o deixar os acontecimentos desenrolarem-se sem nos envolvermos demasiado neles. Um exemplo prático que ele utiliza e que é muito mundano mas que exemplifica bem o que se passa a tantos outros níveis: imaginar que estamos a conduzir e a ouvir uma música que adoramos, a passar um bom momento e de repente alguém se atravessa e apanhamos um susto; a nossa reação é buzinar, ficar chateado e se calhar até pensar que aquele momento já estragou a "boa vibe" que estávamos a experienciar, algumas pessoas inclusivamente ficam tão apegadas a isso que deixam que esse acontecimento estrague o resto do dia delas; é isso que gera o mau humor e os estados internos negativos. Obviamente que basta um bocadinho de consciência para entender que deixar que esse acontecimento nos deixe de mau humor é parvo, e que o mais intuitivo (pelo menos para mim) é processar o susto e soltá-lo. Não ficar a remoer em coisas como "o meu chefe mandou uma boca", "a inflação está a subir em flecha", "deixaste a luz acesa", "já estamos em abril e ainda está frio". Epa, são coisas mundanas que acontecem, que as sentimos, que têm impacto, mas que, se as processarmos corretamente, daqui a uma semana nem me vou lembrar delas, porque já estou num nível de entendimento que me permite transcender essas coisas (mas não outras). É isso que ele quer dizer com deixar que as coisas aconteçam mas não ceder à reação, não nos apegarmos a esses acontecimentos, nem nos envolvermos demasiado neles. OK, mas e os acontecimentos bons? Ele não fala disto no livro, mas se aplicarmos a lógica de nos colocarmos no lugar do mero sujeito que observa o objeto e não se envolve demasiado nos estados mentais e emocionais que resultam do estar dentro dos acontecimentos, e passarmos a estar só fora deles... A questão que eu coloco é: e viver a alegria? A paixão? O thrill? O entusiasmo? Se renegarmos as energias "boas" e nos distanciarmos a esse ponto tão radical, iremos também perder as melhores partes da experiência humana.

 

Dominar tudo isto e atingir este estado de consciência de um modo permanente, acho que é um life-long process. Não é por ter lido este livro ou estar super "dentro de mim" e a observar-me a mim mesma que consigo dominar isto. Talvez nem nunca consiga no meu tempo de vida. Mas as bases estão definitivamente lá. É muito mais fácil para mim, hoje, voltar ao meu centro e realmente relativizar os acontecimentos da vida, do que já foi no passado. E isso é uma ferramenta de desenvolvimento pessoal poderosíssima.

Apesar das "críticas", este livro cumpriu o seu objetivo de me colocar novas questões, e de me colocar ciente de que estou ciente de que não sou realmente "eu" que estou a escrever este post, por exemplo, mas sim toda uma Cláudia construída por milhentas coisas a que chamo da minha identidade. 

Apesar de considerar quase impraticável alguém conseguir atingir esse estado de 100% de consciência, eu vejo beleza e um potencial de crescimento imenso no simples ato de tentar. Só que agora eu estou consciente, mais do que nunca, de que estou nesse processo, de questionar, neste processo de viver com intensidade este caminho de transformação pessoal.

 

"A Libertação da Alma é uma extraordinária viagem pelo interior da mente, que permitirá alcançar um verdadeiro despertar espiritual. O livro que todos os cépticos deveriam ler."

 

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