domingo, 4 de agosto de 2024

Aperceber-me de que estou a fazer o mesmo luto há anos

 

Acredito bastante na questão das energias das pessoas, de sentirmos (mesmo fisicamente, quase) coisas diferentes consoante as pessoas com quem estamos. Algo a um nível mais profundo que o mero mental, o que achamos da pessoa, ou a opinião que temos, ou como ela se comporta, ou as memórias que temos dela. Não, é uma sensação física, mesmo.

No entanto, nunca costumo estar muito atenta a isso. Sou tão distraída com isso que acho que a maior parte das vezes nem o sinto, ou acho que as energias da maioria das pessoas com quem vou estando é, simplesmente, neutra.

No entanto, existe uma pessoa na minha vida. Uma pessoa. Uma fonte de tudo o que é bom e mau, afeto e distância, dar e sugar, tudo ao mesmo tempo, tudo muito intenso, tudo muito estranho, tudo muito muito.

E diria que seja até mesmo a única pessoa com a qual eu realmente SINTO coisas estranhas no meu corpo quando estou perto dela.

Nem consigo explicar. É uma "uneasiness", à falta de melhor expressão em português. Uma falta de alinhamento, um caos interno que fica encoberto pela superficialidade dos temas quotidianos. Uma espécie de medo, que não é bem medo, e vergonha que não é bem vergonha, mas uma generalizada falta de à vontade, uma estranheza, um desassossego que não é daqueles bons...

 

 

E apercebi-me, recentemente, de que não só esta é a única pessoa com a qual sinto tudo isso sem precisar colocar-me num lugar de "vou estar atenta a isto" e, portanto, sem me preparar para estar em consciência para isso, sem me preparar para estar atenta a esses sinais.

Simplesmente acontece e nunca é uma sensação boa.

Nunca é uma sensação de paz, de estar bem, de poder ser eu. E não é neutro. É mesmo negativamente estranha. Mesmo quando, à superfície, está tudo bem...

Fecho-me em copas, fecho-me totalmente, e mesmo quando penso "hoje vou ser mais natural, abrir-me mais, falar mais"... Nunca consigo atingir essa naturalidade.

É como um muro que se ergue à minha volta e dentro de mim. 

Ao longo dos anos, fui-me apercebendo que primeiro não conseguia, e hoje em dia simplesmente não quero, desarmar esse muro. Ele protege-me e tem uma função. 

Não quero, porque nunca senti que podia ter essa abertura. E, se a tivesse, quando a tive, senti-me de alguma forma minorizada por isso. Nunca me senti acolhida, e embora não me lembre, de todo, de tudo o que se passou para que este sentimento crescesse em mim e comigo. Sei que tenho imensos "esquecimentos" marcantes.

Não gosto de me apelidar de vítima, sei que existem abusos realmente graves, sexuais, de negligência severa, de abandono. Nunca passei por nada disso, felizmente.

E por não ter passado por este tipo de abusos, mas por outros mais subtis, com mais nuances, fazem-me sentir culpa por hoje dizer "eu cresci com abuso emocional". Mas tenho de enfrentar essa realidade. Eu não fui violada, espancada, abandonada, mas passei por coisas emocionais (ou por falta delas) muito duras e marcantes, que até hoje me fazem tremer.

Esta sensação permanente, muito desagradável, levou-me a fazer vários tipos de terapia ao longo da vida, adolescente até à idade adulta, tanto no mais convencional como no mais "alternativo", leituras de aura, reikis, hipnoterapias, tudo em busca de respostas. Tudo porque queria calar este sentimento, que por mais soluções que tentasse arranjar, nunca me abandonou. Esta sensação nunca me abandonou e acho que hoje em dia, pelo menos na fase que estou a atravessar, até se intensificou. E acho que tenho de aceitar que ela faz parte de mim, de quem eu sou, de quem em me tornei e que me define em muitas atitudes, mesmo noutras facetas da vida.

O que me leva, invariavelmente e como em tantas outras componentes da minha vida, ao sentimento de culpa. Porque eu sei que não existe propriamente maldade direcionada a mim, porque sei que as intenções são as melhores, porque sei que há amor mas que, por motivos que eu própria ainda nem sei bem, esse amor não é recíproco, porque não consigo receber esse amor da forma como ele é expresso e, por estar tão distante da minha própria linguagem do amor, não consigo "reciprocar" da mesma forma. A culpa que sinto por me sentir mal com uma pessoa que, na realidade, não existe nada palpável que eu consiga dizer que me faz mal. Lá está, é sempre aquela sensação intrínseca que vem sei lá de onde.

Eu devia amar esta pessoa, mas não tenho a certeza se amo. E primeiro que conseguisse verbalizar isso para mim... Foram anos. Agora, consigo verbalizá-lo para mim, mas não consigo verbalizá-lo para fora (ok, só aqui, em escrito, e já considero isso um "breakthrough").

Portanto, a culpa de não amar, a culpa de fazer as coisas por obrigação. Culpa por receber coisas materiais dessa pessoa, culpa por não conseguir sentir gratidão, ou porque a gratidão me é exigida e cobrada a toda a hora, culpa quando me cobram porque, afinal, eu aceitei, então, essa cobrança tem uma razão de ser, então, eu contribuí para isso, então, culpa, culpa, culpa, por toda uma miscelânea. Afinal, "tu só estás aqui graças a mim", ou "sacrifiquei-me tanto por ti", ou "fiz isto tudo por ti", ou "olha, remodelei o teu quarto". Então, o meu discurso interno anda muito à volta do "se fizeram tudo por mim, se fazem tudo por mim, não tenho qualquer legitimidade para me sentir uma m*rda com as coisas e nem sei bem porque me sinto assim, nem sei bem o que aconteceu para me sentir assim". E é um discurso que eu identifico com clareza, que sei que é completamente destrutivo, mas que me faz querer voltar atrás e dizer "não, mas eu não quero nada".

Passados tantos anos, eu apercebi-me de que tenho vindo a fazer um luto: um luto do que quis ter e precisava ter e nunca tive, emocionalmente falando. Um luto de uma relação que quis que tivesse sido de outra forma mas nunca consegui, e porque nunca conseguimos se formos apenas nós a querer mudar as coisas. Um luto porque percebi que nunca irei ter essa realidade e que o cansaço de correr atrás dela desgasta-me mais do que a simples aceitação. E também, muito importante, a aceitação de que não há nada de errado em mim por ter querido ou precisado dessas coisas que nunca tive. Parar de me culpabilizar por ter precisado disso e não o ter tido.

Mais: aceitação de que as sensações físicas desagradáveis estarão sempre por lá, que a culpa é um tema a ser trabalhado, mesmo que a um nível racional eu saiba que não tenho culpa.

E mais ainda: talvez o luto esteja a decorrer também do outro lado, porque a relação também não é o que esta pessoa queria que fosse e eu sei disso, e cada vez acho mais importante pararmos para nos questionar qual o nosso papel nas dinâmicas? A "culpa" nunca é só de uma pessoa. De que forma eu contribuí para isso? Sei que a outra pessoa também não tem de mim o que quer ou o que agora precisa, porque sei que não o dou, porque não consigo dar, devido a tudo o que já escrevi acima. Então, percebi que também, talvez, esta relação que poderia ter sido de outra forma, mas que não é, e dificilmente alguma vez será... Provoca luto de ambos os lados. 

Mas tudo bem. Eu não quero mais calar as vozes, calar a culpa, ou achar que a outra pessoa deve mudar, quando não quer, ou não percebe, de forma genuína, que seria bom também olhar para si. Ou que, lá está, ela própria também sente esse luto, mesmo que não o veja dessa forma, porque eu também tenho responsabilidade em toda esta dinâmica. A linha entre a auto-responsabilização e auto-culpabilização pode ser muito ténue e é um desafio, para mim, encontrar esse ponto ótimo.

Eu quero aceitar que estou a fazer este luto, agora que me apercebi que se trata de um processo de luto, isso dá-me imensas respostas e até caminhos de solução, sem necessariamente, ter de alterar o que quer que seja que não seja dentro de mim. O facto de ter finalmente conseguido NOMEAR este embrulho todo, já me traz uma outra clareza.

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