Não me lembro de brincar (muito).
Tudo
o que vejo hoje na Lia - correr, saltar, trepar, fazer de conta, ir aos
parques, escorregar nos escorregas de todas as formas e feitios, fazer puzzles
e legos. Não me lembro de nada disto.
Não
sei se não me lembro porque não o fiz, ou por outro motivo.
Lembro-me
de ver a Heidi nas montanhas e adorar. Também me lembro de perguntar, quando
era pequena, dizer assim "Eu sou a Heidi! E tu és quem?" e a resposta
que obtinha era "Deixa-te de coisas. Tu és a Cláudia, eu sou quem
sou".
O
estímulo à imaginação, ao faz de conta, ao encorporar personagens, não existia.
Então, limitava-me a brincar sozinha, a fazer de conta sozinha, num imaginário
que recordo ser bastante solitário.
Lembro-me
de - mais uma vez, sozinha - rabiscar em folhas de rascunho, fingia que estava
a escrever. Brincava de limpar a casa, passava o pano no pó, a esfregona no
chão. Dava aulas imaginárias aos meus alunos imaginários, era professora. Via
novelas sozinha e fazia de conta que era as personagens - inclusivamente nas
partes mais sexuais, em que fingia o ato com uma cadeira. Questionava-me se,
quando punha o CD da Xuxa a tocar, ela estaria a dançar e a cantar na
realidade, de propósito, só para mim. Escrevia os nomes das bonecas, nas testas
delas (isto quando já sabia escrever). Não era muito de brinquedos em si, acho
que brincava à vida real, e via imensa televisão.
Eu
tinha um imaginário, mas não me lembro de o partilhar com ninguém. Lembro-me
destes momentos serem todos muito sozinha.
Ainda hoje tenho esse imaginário muito presente, uma
parte de mim bastante infantil e ingénua, e continuo a estar muito sozinha, mas
desta feita, por opção, porque gosto de estar sozinha.
Não
tenho muitas memórias da minha infância, mas sinto que não foi feliz. Sinto,
até, que foi triste. Essas situações de "ausência" são algumas que
consigo nomear, mas a sensação que tenho, é que é bastante mais abrangente.
Algo bastante mais profundo, triste e solitário.
Mas,
novamente, o tema da culpa.
Porque me sinto assim? Ninguém me batia. Havia gritos de vez em quando, mas
pronto. Não era uma situação de violência extrema, de todo. Recebi afeto.
Recebi amor. Recebi abraços e beijinhos. Recebi aulas de ballet e ir andar de
patins. Recebi uma educação de excelência. Mas sinto que não recebi
tanta coisa que precisava ter recebido, mesmo em substituição de algumas outras
que tive (se fosse hoje, se pudesse escolher, facilmente trocava o
colégio privado por outras dimensões que me fizeram muito mais falta). Mas são
coisas tão pontuais e específicas - ou às vezes era muito e outras vezes era
pouco - que não posso dizer necessariamente "fui maltratada".
Acho
que, no fundo, às vezes nem tratada era. Tenho a sensação que fui esquecida.
Não esquecida no sentido de deixarem de cuidar de mim, até porque nunca me faltou
nada de básico e mais além, tive uma educação excelente. Mas, sei lá, sentia
que não era vista. Os meus sentimentos não eram vistos. Passei por imensa
instabilidade, mil mudanças, discussões sobre mim, competições sobre mim, e
sentia que nunca ninguém realmente se importava com o que tudo aquilo me fazia
sentir. Ninguém se colocava ao meu nível e perguntava "olha, como
te sentes? os teus pais estão sempre a competir por ti, quem gasta mais
dinheiro contigo, quem se sacrifica mais e por isso tu sentes-te imensamente
culpada, não queres que ninguém compita por ti, estão sempre neste jogo de quem
toma melhor conta, quem te leva mais vezes ao médico, eu sou bom e ela é a má,
eu sou a boa e ele é o mau, espero que não fiques como ele quando cresceres, pois,
gostas mais dele do que de mim, não gostas de mim, não me amas, porque gostas
dele". "Olha como te faz sentir, agora que te obriguei a viver em
casa da avó, porque sim, porque achei melhor, e agora tens 14 anos e nem um
quarto para ti tens, nem um cantinho onde possas escrever no teu diário, tens
de te esconder na casa-de-banho, agora veio-te o primeiro período e ninguém te
explicou bem o que era; olha, sei que estás a passar por coisas interiores
fortes, como te sentes com isso?"(nada contra a minha avó, amava-a de
coração, não é isso que está em causa). Talvez só precisasse ter ouvido
estas palavras, ou semelhantes, mas a sensação que tenho, é que realmente nunca
ninguém quis saber. Em vez de alguém se preocupar com o quão nocivo isso era,
era só ruído, como se eu tivesse de tomar partidos, escolher alguém, gostar
mais de alguém, pôr alguém mais acima que o outro, porque afinal fazia tudo por
mim, não tinha nada que me queixar.
Isto
foi duro, muito duro, sentia-me um isco, um boneco nas mãos de uns e outros, à
mercê do que decidiam por mim, eu não valia nada, e pior ainda, eu era
a causadora e a culpada das desavenças, das competições, do constante clima de
agressividade e tensão e conflito e guerra. Isto só acontecia, porque
eu existia.
Hoje,
consigo dialogar com a minha criança interna, e explicar-lhe que nada daquilo
fazia sentido e que nada daquilo era culpa minha, mas o que é facto, é que
ainda o sinto como se fosse realidade.
Não
culpo os meus pais, sei que fizeram o melhor que sabiam com o que tinham. Não
havia cá páginas de Instagram a ensiná-los como serem pais conscientes, que
ouvem os filhos, que validam os sentimentos deles, que percebem o quão é
importante para alguém que está a crescer, não mostrar competição, não falar
mal do outro, não estar sempre a incutir mudanças forçadas.
Foi
feita muita coisa boa por mim e não posso desvalorizar isso - talvez eu é que
era exigente, ou eu é que era uma criança sossegada, gostava de estar no meu
canto, ainda gosto. Talvez eu tenha tido depressão infantil, uma tristeza que
nunca mais senti ao longo da minha vida, talvez se tenha resolvido e nunca mais
me voltei a sentir assim. Então, não era culpa de ninguém, era uma
doença.
Aliás,
cheguei a pesquisar sobre o tema, a total indiferença nas atividades, não
queria fazer nada, não tinha interesse por brincar a nada, entre outros,
sentia-os a todos, talvez tenha tido uma pequena depressão em criança, que
ficou "unnoticed", que passou sozinha, e que eu me esqueci, tendo
ficado só uma sensação de profunda tristeza nessa época na minha vida, com
a qual aprendi a viver mas que ainda hoje em dia de vez em quando vou acedendo.
Que
bom que hoje olho para a Lia e vejo que ela é uma criança feliz. Espero, muito,
que ela tenha memórias da infância dela. Memórias claras. As minhas são muito
esbatidas, flashbacks. E não lá muito positivas, esta é a realidade.
Quero
muito que ela se sinta vista, validada, acarinhada. E esta é a parte boa dos nossos traumas. É que somos
livres e temos o poder de pegar neles e transformá-los em algo melhor para o
futuro.
Partilho
um post que fiz no Facebook há cerca de 2 anos atrás, porque
me lembrei dele ao escrever este artigo, e resume muito bem a minha posição
quanto ao tema "infância" na minha vida:
"Uma tia minha já me disse
algumas vezes que, quando eu era pequena, costumava dizer "tenho triste no
coração". Eu não me lembro de dizer isso, ou do que me fazia dizer isso,
tal como não me lembro do porquê me dizerem que eu tinha um ar triste (e tenho,
nas fotos), que eu nunca sorria. Não me lembro de praticamente nada da minha
infância, tenho umas memórias vagas, algumas nada boas, mas nada de muito
sólido, e sempre um feeling estranho em relação a isso. Mas ainda bem que não
me lembro. Só sei que fui criança até muito tarde e ainda sou um bocado. Ainda
tenho uma criança muito viva dentro de mim porque acho que nunca a pude ser
quando deveria ter sido. Mas isso é bom.
Lembro-me de começar a ser uma pessoa
feliz já no final da minha adolescência. Aí sim começaram a acontecer coisas
muito boas na minha vida que me transformaram e me tornaram numa pessoa que
nunca sorri, para uma pessoa que até sorri facilmente demais. Por vezes tento
perceber o porquê dos meus sentimentos em relação à minha infância mas
rapidamente percebo que não vale a pena divagar no passado ou tentar
compreendê-lo. Vale a pena, sim, abraçar que esses sentimentos ambíguos
existem, que não são bons, mas que estão lá, aceitá-los, e usá-los para
construir raízes melhores, no presente e no futuro. Não vale de nada ficarmos
presos ao que foi ou deixou de ser para justificar o que é e o que ainda pode
vir a ser. Eu uso muito estes sentimentos como "combustível" para
fazer de cada dia presente uma experiência melhor. E isso também se reflecte na
minha experiência de maternidade. Eu sei que não sou nem nunca vou ser uma mãe
perfeita, mas um dos meus objetivos é que a Lia nunca diga "tenho triste
no coração". Que ela não tenha sentimentos ambíguos e memórias recalcadas
da infância dela, que não haja uma época específica da vida dela em que ela
diga que "foi só aí que começou a ser feliz". Quero que ela se sinta
feliz desde sempre. Mesmo que ela agora ainda não se lembre com a memória da
cabeça, vai-se lembrar com a memória que fica no nosso inconsciente desde o
momento em que somos postos neste mundo."
Agora, após ler este texto, penso, não é minha
responsabilidade fazer com que a Lia seja feliz. E isto foi uma realização que
fiz recentemente, ainda não a tinha quando escrevi o texto acima, há 2 anos.
Incrível como somos sempre seres em evolução.
Ela terá de encontrar isso (a "felicidade")
dentro dela. Sempre guiada, orientada, e VISTA. Mas
terá de ter os traumas dela para encontrar o caminho dela. Não me cabe a mim
fazê-la feliz, e não a cabe a ela fazer-me feliz a mim. E por isso tenho
uma grande aversão a tudo o que seja pais a colocar toda a responsabilidade da
sua própria felicidade e da sua própria culpa nos filhos. Eu cresci com esse
peso e não quero de todo pôr esse peso nela.
Mas posso, e quero, dar-lhe as ferramentas de vida
para que faça o seu crescimento interior. Não posso dar-lhe a felicidade em si,
porque acredito cada vez mais que ninguém o pode fazer por nós, nem mesmo os
nossos pais. Mas os pais podem, e devem, dar as condições, um ambiente de paz,
no mínimo isso, paz, para que consiguemos encontrar o nosso caminho.
Agora, um exercício ainda de auto-observação: escrevi este texto num calor de momento e num
período de reflexão. No dia seguinte, pensei "epa, não vou publicar. estou
outra vez a entrar no papel de vítima e porque a minha infância foi assim e
assado. não há necessidade". Mas depois, logo de imediato, pensei: mas
porquê? Porque esta pressão autoimposta? Qual é o mal de sentirmos o que
sentirmos e de expormos o que sentimos? Qual é o mal de viver a dor? É
preciso viver a dor, sim. É preciso vivê-la e esgotá-la. E muitas vezes ela
vai, adormece, hiberna, e depois volta. Estou cansada desta cultura hiper
positiva de "não fiques a pensar nisso", "já passou" e
"bola para a frente".
Outro sentimento que tive foi o de vergonha. Vergonha
não por partilhar o que sinto que passei, mas vergonha por talvez fazer de
algo maior do que realmente foi. Vergonha de quem lesse e julgasse algo
assim "a sério que te estás a queixar disso? Não sabes o que são problemas
a sério". Percebendo depois que esse medo e vergonha de julgamento é o
reflexo do meu próprio medo e vergonha pela situação. Pensar "a sério,
que te consomes por coisas como esta? Já passou, ultrapassa, provavelmente, é
um exagero da tua mente". Mas porque é que eu alimento este tipo de
auto-discurso?
Caramba, mas o facto de eu conseguir identificar
que tive estes pensamentos e emoções, que consigo cada vez melhor nomeá-los, e
conseguir ultrapassar esses complexos, é uma parte do processo absolutamente
essencial, mesmo que não seja "bonito". Vamos lá ultrapassar este
complexo de ser tudo tão bonitinho.
Eu sou uma pessoa otimista e positiva mas do género:
há sempre algum outcome positivo de vivermos nas e com as nossas
sombras. Esta fase que estou a passar (e já é a 587ª deste género que passo na
vida, lol, é cíclico, vai e volta) é sempre penosa, é sempre "de
sombra", é sempre desagradável, mas há sempre um outcome positivo.
Sempre. Nunca houve nenhuma fase destas que tenha passado, que não me fizesse
crescer incrivelmente. Este olhar para dentro e viver com o que está lá dentro,
não empurrar com a barriga e não ceder àquela do "mas a vida é tão linda e
positiva, tenho de sorrir que tudo vai passar". Não. Mas tem de passar
agora, porquê? Passa quando tiver de passar. Como já passaram nas outras 586
fases de "olhar para dentro e questionar" pelas quais já passei e
como irão passar as próximas 600. Estes processos de olhar para dentro e
ruminar sobre os diversos temas e quase ficar obcecada com eles e escrever
sobre eles até à exaustão. É uma forma de cura.
Um dos outcomes positivos, por exemplo, foi o
ter voltado a escrever. Eu sempre escrevi muito, desde sempre, e depois parei.
E agora voltei e está a saber-me bem este regresso. E depois hei-de voltar a
deixar de escrever. Que seja. Que seja o que for!
Por isso, decidi publicar este texto, à mesma. Escrever
é mesmo uma ajuda para sossegar a alma.
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