domingo, 4 de agosto de 2024

Dos meus esquecimentos marcantes

 

Não me lembro de brincar (muito).




Tudo o que vejo hoje na Lia - correr, saltar, trepar, fazer de conta, ir aos parques, escorregar nos escorregas de todas as formas e feitios, fazer puzzles e legos. Não me lembro de nada disto.

Não sei se não me lembro porque não o fiz, ou por outro motivo.

Lembro-me de ver a Heidi nas montanhas e adorar. Também me lembro de perguntar, quando era pequena, dizer assim "Eu sou a Heidi! E tu és quem?" e a resposta que obtinha era "Deixa-te de coisas. Tu és a Cláudia, eu sou quem sou". 

O estímulo à imaginação, ao faz de conta, ao encorporar personagens, não existia. Então, limitava-me a brincar sozinha, a fazer de conta sozinha, num imaginário que recordo ser bastante solitário.

Lembro-me de - mais uma vez, sozinha - rabiscar em folhas de rascunho, fingia que estava a escrever. Brincava de limpar a casa, passava o pano no pó, a esfregona no chão. Dava aulas imaginárias aos meus alunos imaginários, era professora. Via novelas sozinha e fazia de conta que era as personagens - inclusivamente nas partes mais sexuais, em que fingia o ato com uma cadeira. Questionava-me se, quando punha o CD da Xuxa a tocar, ela estaria a dançar e a cantar na realidade, de propósito, só para mim. Escrevia os nomes das bonecas, nas testas delas (isto quando já sabia escrever). Não era muito de brinquedos em si, acho que brincava à vida real, e via imensa televisão.

Eu tinha um imaginário, mas não me lembro de o partilhar com ninguém. Lembro-me destes momentos serem todos muito sozinha.

 

Ainda hoje tenho esse imaginário muito presente, uma parte de mim bastante infantil e ingénua, e continuo a estar muito sozinha, mas desta feita, por opção, porque gosto de estar sozinha.

Não tenho muitas memórias da minha infância, mas sinto que não foi feliz. Sinto, até, que foi triste. Essas situações de "ausência" são algumas que consigo nomear, mas a sensação que tenho, é que é bastante mais abrangente. Algo bastante mais profundo, triste e solitário. 

Mas, novamente, o tema da culpa. Porque me sinto assim? Ninguém me batia. Havia gritos de vez em quando, mas pronto. Não era uma situação de violência extrema, de todo. Recebi afeto. Recebi amor. Recebi abraços e beijinhos. Recebi aulas de ballet e ir andar de patins. Recebi uma educação de excelência. Mas sinto que não recebi tanta coisa que precisava ter recebido, mesmo em substituição de algumas outras que tive (se fosse hoje, se pudesse escolher, facilmente trocava o colégio privado por outras dimensões que me fizeram muito mais falta). Mas são coisas tão pontuais e específicas - ou às vezes era muito e outras vezes era pouco - que não posso dizer necessariamente "fui maltratada". 

Acho que, no fundo, às vezes nem tratada era. Tenho a sensação que fui esquecida. Não esquecida no sentido de deixarem de cuidar de mim, até porque nunca me faltou nada de básico e mais além, tive uma educação excelente. Mas, sei lá, sentia que não era vista. Os meus sentimentos não eram vistos. Passei por imensa instabilidade, mil mudanças, discussões sobre mim, competições sobre mim, e sentia que nunca ninguém realmente se importava com o que tudo aquilo me fazia sentir. Ninguém se colocava ao meu nível e perguntava "olha, como te sentes? os teus pais estão sempre a competir por ti, quem gasta mais dinheiro contigo, quem se sacrifica mais e por isso tu sentes-te imensamente culpada, não queres que ninguém compita por ti, estão sempre neste jogo de quem toma melhor conta, quem te leva mais vezes ao médico, eu sou bom e ela é a má, eu sou a boa e ele é o mau, espero que não fiques como ele quando cresceres, pois, gostas mais dele do que de mim, não gostas de mim, não me amas, porque gostas dele". "Olha como te faz sentir, agora que te obriguei a viver em casa da avó, porque sim, porque achei melhor, e agora tens 14 anos e nem um quarto para ti tens, nem um cantinho onde possas escrever no teu diário, tens de te esconder na casa-de-banho, agora veio-te o primeiro período e ninguém te explicou bem o que era; olha, sei que estás a passar por coisas interiores fortes, como te sentes com isso?"(nada contra a minha avó, amava-a de coração, não é isso que está em causa). Talvez só precisasse ter ouvido estas palavras, ou semelhantes, mas a sensação que tenho, é que realmente nunca ninguém quis saber. Em vez de alguém se preocupar com o quão nocivo isso era, era só ruído, como se eu tivesse de tomar partidos, escolher alguém, gostar mais de alguém, pôr alguém mais acima que o outro, porque afinal fazia tudo por mim, não tinha nada que me queixar.

Isto foi duro, muito duro, sentia-me um isco, um boneco nas mãos de uns e outros, à mercê do que decidiam por mim, eu não valia nada, e pior ainda, eu era a causadora e a culpada das desavenças, das competições, do constante clima de agressividade e tensão e conflito e guerra. Isto só acontecia, porque eu existia.

Hoje, consigo dialogar com a minha criança interna, e explicar-lhe que nada daquilo fazia sentido e que nada daquilo era culpa minha, mas o que é facto, é que ainda o sinto como se fosse realidade.



Não culpo os meus pais, sei que fizeram o melhor que sabiam com o que tinham. Não havia cá páginas de Instagram a ensiná-los como serem pais conscientes, que ouvem os filhos, que validam os sentimentos deles, que percebem o quão é importante para alguém que está a crescer, não mostrar competição, não falar mal do outro, não estar sempre a incutir mudanças forçadas.

Foi feita muita coisa boa por mim e não posso desvalorizar isso - talvez eu é que era exigente, ou eu é que era uma criança sossegada, gostava de estar no meu canto, ainda gosto. Talvez eu tenha tido depressão infantil, uma tristeza que nunca mais senti ao longo da minha vida, talvez se tenha resolvido e nunca mais me voltei a sentir assim. Então, não era culpa de ninguém, era uma doença. 

Aliás, cheguei a pesquisar sobre o tema, a total indiferença nas atividades, não queria fazer nada, não tinha interesse por brincar a nada, entre outros, sentia-os a todos, talvez tenha tido uma pequena depressão em criança, que ficou "unnoticed", que passou sozinha, e que eu me esqueci, tendo ficado só uma sensação de profunda tristeza nessa época na minha vida, com a qual aprendi a viver mas que ainda hoje em dia de vez em quando vou acedendo.

 




Que bom que hoje olho para a Lia e vejo que ela é uma criança feliz. Espero, muito, que ela tenha memórias da infância dela. Memórias claras. As minhas são muito esbatidas, flashbacks. E não lá muito positivas, esta é a realidade.

Quero muito que ela se sinta vista, validada, acarinhada. E esta é a parte boa dos nossos traumas. É que somos livres e temos o poder de pegar neles e transformá-los em algo melhor para o futuro.



Partilho um post que fiz no Facebook há cerca de 2 anos atrás, porque me lembrei dele ao escrever este artigo, e resume muito bem a minha posição quanto ao tema "infância" na minha vida:

"Uma tia minha já me disse algumas vezes que, quando eu era pequena, costumava dizer "tenho triste no coração". Eu não me lembro de dizer isso, ou do que me fazia dizer isso, tal como não me lembro do porquê me dizerem que eu tinha um ar triste (e tenho, nas fotos), que eu nunca sorria. Não me lembro de praticamente nada da minha infância, tenho umas memórias vagas, algumas nada boas, mas nada de muito sólido, e sempre um feeling estranho em relação a isso. Mas ainda bem que não me lembro. Só sei que fui criança até muito tarde e ainda sou um bocado. Ainda tenho uma criança muito viva dentro de mim porque acho que nunca a pude ser quando deveria ter sido. Mas isso é bom.

Lembro-me de começar a ser uma pessoa feliz já no final da minha adolescência. Aí sim começaram a acontecer coisas muito boas na minha vida que me transformaram e me tornaram numa pessoa que nunca sorri, para uma pessoa que até sorri facilmente demais. Por vezes tento perceber o porquê dos meus sentimentos em relação à minha infância mas rapidamente percebo que não vale a pena divagar no passado ou tentar compreendê-lo. Vale a pena, sim, abraçar que esses sentimentos ambíguos existem, que não são bons, mas que estão lá, aceitá-los, e usá-los para construir raízes melhores, no presente e no futuro. Não vale de nada ficarmos presos ao que foi ou deixou de ser para justificar o que é e o que ainda pode vir a ser. Eu uso muito estes sentimentos como "combustível" para fazer de cada dia presente uma experiência melhor. E isso também se reflecte na minha experiência de maternidade. Eu sei que não sou nem nunca vou ser uma mãe perfeita, mas um dos meus objetivos é que a Lia nunca diga "tenho triste no coração". Que ela não tenha sentimentos ambíguos e memórias recalcadas da infância dela, que não haja uma época específica da vida dela em que ela diga que "foi só aí que começou a ser feliz". Quero que ela se sinta feliz desde sempre. Mesmo que ela agora ainda não se lembre com a memória da cabeça, vai-se lembrar com a memória que fica no nosso inconsciente desde o momento em que somos postos neste mundo."

 

Agora, após ler este texto, penso, não é minha responsabilidade fazer com que a Lia seja feliz. E isto foi uma realização que fiz recentemente, ainda não a tinha quando escrevi o texto acima, há 2 anos. Incrível como somos sempre seres em evolução.

 



 

Ela terá de encontrar isso (a "felicidade") dentro dela. Sempre guiada, orientada, e VISTA. Mas terá de ter os traumas dela para encontrar o caminho dela. Não me cabe a mim fazê-la feliz, e não a cabe a ela fazer-me feliz a mim. E por isso tenho uma grande aversão a tudo o que seja pais a colocar toda a responsabilidade da sua própria felicidade e da sua própria culpa nos filhos. Eu cresci com esse peso e não quero de todo pôr esse peso nela.

 

Mas posso, e quero, dar-lhe as ferramentas de vida para que faça o seu crescimento interior. Não posso dar-lhe a felicidade em si, porque acredito cada vez mais que ninguém o pode fazer por nós, nem mesmo os nossos pais. Mas os pais podem, e devem, dar as condições, um ambiente de paz, no mínimo isso, paz, para que consiguemos encontrar o nosso caminho.

 

Agora, um exercício ainda de auto-observação: escrevi este texto num calor de momento e num período de reflexão. No dia seguinte, pensei "epa, não vou publicar. estou outra vez a entrar no papel de vítima e porque a minha infância foi assim e assado. não há necessidade". Mas depois, logo de imediato, pensei: mas porquê? Porque esta pressão autoimposta? Qual é o mal de sentirmos o que sentirmos e de expormos o que sentimos? Qual é o mal de viver a dor? É preciso viver a dor, sim. É preciso vivê-la e esgotá-la. E muitas vezes ela vai, adormece, hiberna, e depois volta. Estou cansada desta cultura hiper positiva de "não fiques a pensar nisso", "já passou" e "bola para a frente".

 

Outro sentimento que tive foi o de vergonha. Vergonha não por partilhar o que sinto que passei, mas vergonha por talvez fazer de algo maior do que realmente foi. Vergonha de quem lesse e julgasse algo assim "a sério que te estás a queixar disso? Não sabes o que são problemas a sério". Percebendo depois que esse medo e vergonha de julgamento é o reflexo do meu próprio medo e vergonha pela situação. Pensar "a sério, que te consomes por coisas como esta? Já passou, ultrapassa, provavelmente, é um exagero da tua mente". Mas porque é que eu alimento este tipo de auto-discurso?

 

Caramba, mas o facto de eu conseguir identificar que tive estes pensamentos e emoções, que consigo cada vez melhor nomeá-los, e conseguir ultrapassar esses complexos, é uma parte do processo absolutamente essencial, mesmo que não seja "bonito". Vamos lá ultrapassar este complexo de ser tudo tão bonitinho.

 

Eu sou uma pessoa otimista e positiva mas do género: há sempre algum outcome positivo de vivermos nas e com as nossas sombras. Esta fase que estou a passar (e já é a 587ª deste género que passo na vida, lol, é cíclico, vai e volta) é sempre penosa, é sempre "de sombra", é sempre desagradável, mas há sempre um outcome positivo. Sempre. Nunca houve nenhuma fase destas que tenha passado, que não me fizesse crescer incrivelmente. Este olhar para dentro e viver com o que está lá dentro, não empurrar com a barriga e não ceder àquela do "mas a vida é tão linda e positiva, tenho de sorrir que tudo vai passar". Não. Mas tem de passar agora, porquê? Passa quando tiver de passar. Como já passaram nas outras 586 fases de "olhar para dentro e questionar" pelas quais já passei e como irão passar as próximas 600. Estes processos de olhar para dentro e ruminar sobre os diversos temas e quase ficar obcecada com eles e escrever sobre eles até à exaustão. É uma forma de cura.

 

Um dos outcomes positivos, por exemplo, foi o ter voltado a escrever. Eu sempre escrevi muito, desde sempre, e depois parei. E agora voltei e está a saber-me bem este regresso. E depois hei-de voltar a deixar de escrever. Que seja. Que seja o que for!

 

Por isso, decidi publicar este texto, à mesma. Escrever é mesmo uma ajuda para sossegar a alma.   

 

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