domingo, 4 de agosto de 2024

O Ego / É útil e tem várias funções mas é traiçoeiro / A Desconstrução do Ego

 

O tema do Ego, do porquê da sua existência, e da sua desconstrução como via para o melhoramento pessoal, ao mesmo tempo entendendo e aceitando que não é um monstro, que tem funções importantes para a nossa sobrevivência, é um tema complexo pelo qual me tenho interessado muitíssimo. É fascinante e todo o processo de ir para além do Ego, ir mais fundo em todas as camadas que o compõe, explorando a profunda sabedoria de desvendar seu domínio sobre nossas vidas.




O que é o Ego e como é que ele surge (o "vazio")

O Ego (teoria psicanalítica de Sigmund Freud) é aquilo que nós achamos que somos. É a nossa identidadeÉ o ator principal no filme das nossas vidas. O Ego é composto por memórias e crenças que formam a nossa noção de realidade, do que somos nós e do que são os outros, e desdobra-se nos vários personagens que desempenhamos nos vários ambientes que frequentamos. 

O Ego surge quando nos apercebemos de que somos uma entidade separada de tudo o resto. De acordo com o psicanalista francês Jacques Lacan, o Ego surge entre os 6 e os 18 meses, quando o bebé começa a reconhecer-se no espelho como uma identidade separada do espaço ou ar que o(a) rodeia. É o início do desenvolvimento psíquico desta nossa vertente. Há quem diga também que é nesse momento que começa "o vazio". Mas isso é outro tema.

Não conhecia esta teoria ou explicação. No outro dia, curiosamente, a Lia estava a fazer poses ao espelho, depois de me pedir para lhe fazer uma trança. Antes, ela apenas se olhava no espelho, agora faz poses. E, ao observá-la, percebi que ali começava a desenvolver-se uma coisa no Ego dela: a  vaidade 😛

Uma das coisas mais fascinantes que encontro na maternidade é ver em primeira fila um ser a desenvolver-se para o mundo, do zero. Acho incrível. E este tema do Ego, agora que estou a aprender mais sobre ele... Estou mais consciente também em relação a ela. É deslumbrante poder ver este processo a desenrolar-se à minha frente.

E, mais uma vez, ajuda também ao processo de aprendermos a observar e a separar aquilo que faz parte integrante de nós, mas não é tudo o que somos. Ao observá-la a ela, observo-me a mim também.



 

A sua função e os seus mecanismos

É previsibilidade, é segurança, é o familiar, é o "é assim". A sua função principal é proteger-nos. E como é que o faz? Através de pensamentos, emoções, crenças, julgamentos e medos. O ego tenta proteger-nos através do medo, como mecanismo de sobrevivência para recuarmos perante o desconhecido. É, também, aquele que comanda a mente. Ele é que decide, porque o integrou num determinado setting onde nasceu e cresceu, o que é aceitável e não, o que é certo e errado, o que nos impede de sucumbir aos nossos impulsos mais primitivos. É o mecanismo responsável pelo equilíbrio da psique.

Mas é, também, uma ilusão.

O Ego existe para nos ajudar a viver de forma mais ou menos previsível num mundo que, de outra forma, seria caótico e demasiado estimulante para conseguirmos absorver tudo. Também é ele que nos coíbe de matar outro ser humano, usando este exemplo mais extremo, movidos por sentimentos de raiva. No entanto, ao olharmos para o mundo com as lentes do nosso ego, isso faz com que tudo o que acreditamos seja uma ilusão, pois já tem esse filtro.

 

Os estímulos externos e a reação do Ego

Se tentarmos pensar nisto de uma forma pura, todas as emoções advêm do Ego. Alguém nos fez uma crítica (mesmo que construtiva), e o nosso Ego fica atacado. Alguém nos passou à frente na fila, e o nosso Ego fica ofendido. Alguém nos elogia e diz que estamos a fazer um ótimo trabalho e o nosso Ego fica cheio de orgulho. Alguém nos diz "olha, mas tens valor, não penses que não". E o nosso Ego fica todo inflamado.

Sobretudo esta última, acontece-me muito. Quando alguém me elogia, ou quando eu me auto-elogio, sinto logo o meu Ego a inflamar. Mas cada vez estou mais consciente de que isso é um efeito altamente ilusório.

Sair das próprias emoções e observá-las não é apenas no negativo. O facto de começarmos a fazê-lo também no positivo (do género "o ataque daquela pessoa não me define, independentemente da reação do meu Ego, mas o elogio também não") é muito desconfortável. Porque se entrarmos neste jogo, não conseguimos só pensar que é uma estratégia para nos sentirmos menos mal. No fundo, acabamos também por de certa forma renunciar ao que nos faz sentir bem (ou ao nosso Ego). Fazê-lo de outra forma (só para o negativo) é no mínimo hipócrita. É o que o Estoicismo defende, que sejamos moderados na experiência das emoções, sejam elas negativas ou positivas, porque não passam de reações e ilusões do ego, que são temporárias.

Então, depois de nos apercebermos desta realidade, não conseguimos "desaperceber-nos", então, é um processo altamente doloroso e desconfortável. Nunca mais ouviremos uma crítica ou um elogio da mesma forma, pelo menos, é isso que tem acontecido comigo. 

Quando entramos neste caminho, passamos mais a observar como esses estímulos nos fazem sentir e realizar-nos de que eles são incrivelmente passageiros e impermanentes.

 




O Ego no meu processo atual

Há dias em que me sinto forte e invencível. Sinto mesmo que sou a maior, pelos mais variados motivos. E depois há outros em que me sinto uma m*rda. Os discursos internos negativos e positivos oscilam bastante.

"Ah e tal, mas isso acontece com toda a gente!".

Claro que sim! Mas a intensidade com que se vive, varia muito. E claro que, tratando-se de experiências altamente subjetivas, eu não consigo ver ou sentir a intensidade com que os outros sentem os seus estados emocionais, mas no meu caso, estou em crer que são mesmo muito intensos. Porque quando estou triste, embarco por caminhos interiores profundíssimos, e quando estou contente (falando em termos muito simplísticos), fico com o Ego de tal forma que nem acredito como é possível não me sentir assim sempre. É uma auto-confiança tão forte, mas não é minha realmente... É uma reação do meu Ego a um qualquer estímulo externo ou interno baseado nas minhas crenças do que é a realidade.

O que me tem acontecido ultimamente é que a minha consciência para este tema abriu-se de tal forma, que nesses dias em que me sinto invencível, não consigo evitar dar um passo atrás e relembrar-me de que essa invencibilidade é completamente ilusória. O que me coloca no loop de voltar a sentir-me em baixo, o que me faz relembrar que também essa contra-ciclo negativo é ilusório.

Então, no fundo, é um processo - quase involuntário - de encontrar o equilíbrio e reduzir um pouco a intensidade.

Tenho mixed feelings sobre isto, pois, ao mesmo tempo que faz sentido enquanto conceito abstrato, eu gosto bastante da intensidade com a qual vivo as coisas. Todas as coisas. O meu Ego gosta de ser intenso.

Isto é a forma como me sinto hoje em relação ao tema, mas como somos seres em constante evolução e construção (ou quem quer ser isso), amanhã não sei, pode ser outra coisa qualquer!

 

A Desconstrução do Ego - Transcendê-lo e Domá-lo



O Ego não deve ser visto como um bicho-papão, e é neste ponto que muitas vezes discordo da abordagem que muitos autores de desenvolvimento espiritual, "gurus", facilitadores de transformação pessoal, investigadores sobre o tema - lá está, os seus egos, os egos dessas pessoas - defendem.

O que eu acho é que devemos encarar o Ego como uma parte integrante do todo que nós somos.

Ao estarmos conscientes daquilo que é o nosso Ego, e por consequência, daquilo que não é, abre-se todo um novo portal que nos permite libertar dos seus confinamentos e explorar um "eu" mais autêntico.

Ao estarmos conscientes dele, estamos conscientes do impacto e influência que ele tem na forma como conduzmos as nossas vidas, na forma como encaramos e lidamos com os acontecimentos.

Primeiro, temos de reconhecer que ele existe, pela via da auto-observação. Se realmente nos dedicarmos a esta tarefa, se de forma consciente integrarmos este exercício no nosso dia-a-dia, torna-se cada vez mais fácil perceber que parte de nós está a falar, se é o Ego, se somos nós como um todo. Se desconstruirmos o "forte" que o Ego ergue, se observarmos realmente as paredes dele, percebemos a enorme ilusão em que temos andado a viver.

O reconhecimento e a desconstrução do Ego não pode ser com o intuito de nos vermos livres dele, mas sim, de o transcender e de o controlar até certo ponto. De reconhecer que ele existe e tem as suas funções protetoras, mas não deixarmos que ele defina mais do que aquilo que tem de definir. No fundo, mantermos a sua função protetora, mas não castradora. Uma espécie de auto-manipulação.

Trata-se de abraçar ossa interconexão e alinhar com nossa verdadeira essência, além das ilusões do Ego.

 

O domínio do ego, pela via da sua desconstrução, é, eu diria, um dos passos primordiais para ganharmos uma visão e consciência mais claras do que realmente somos, do que realmente todos à nossa volta são, do que o mundo é, de que nós somos esse mesmo mundo. Abre também uma maior capacidade de compaixão, empatia, e renúncia às verdades absolutas. É o primeiro passo para o auto-domínio e evolução pessoal e, consequentemente, evolução nas nossas relações (ou nas relações do nosso Ego com os Egos de quem nos rodeia). Porque quando percebemos que o que vemos nos outros são também os Egos deles, conseguimos ver a pessoa por outro ângulo e realmente relativizar as atitudes nos Egos dessas pessoas que provocam reações nos nossos Egos. No fundo, se encararmos a vida e as situações como meras danças de Egos, conseguimos relativizar uma série de coisas que nunca antes tínhamos sequer colocado em causa.

 

Afinal, como podemos almejar mudar algo que não conhecemos com profundidade? Achamos que conhecemos, mas esse "achismo" não passam das tais crenças ilusórias e verdades que o nosso Ego nos convence que são verdades.

 

Existem várias formas de desconstrução do Ego temporária - para posteriormente abraçar uma nova realidade, ou novas possibilidades, baixando um pouco aquele filtro. Uma delas, é a simples consciência de que falei. Outra são as experiências psicadélicas. Escrevi sobre o tema aqui e aconselho a audição deste podcast. Felizmente, eu descobri que tive experiências de dissolução do ego através da toma recreativa (mas segura) de substâncias psicotrópicas, que tiveram um efeito completamente transformador em mim, mas sem ter nenhuma consciência de tal, só anos mais tarde me apercebi do que me aconteceu, que hoje apelido de trauma bom. Na altura, eu já era uma pessoa muito aberta à experiência e ao desconhecido, já tinha sensibilidade e curiosidade em explorar os mistérios da mente, mas não com a clareza com que consigo ver hoje. Estou grata a mim mesma por me ter permitido ter essas vivências e agora estar a resgatá-las.

 

Porque é que eu estou a partilhar isto

 

Eu acredito na velha máxima "Sê a mudança que queres ver no mundo" (Mahatma Gandhi). Acredito muito que se nos mudarmos a nós, estamos a mudar o mundo. Acredito que qualquer pessoa que passe por um ou vários processos de transformação pessoal, deve partilhar esse processo. Se é benéfico para mim, será para outra pessoa que eventualmente leia isto. Porque eu também bebo da sabedoria de outras pessoas que se interessam por estes temas. Em vez de ser um agente meramente passivo, opto por ter um papel de ativismo neste campo, na medida do que me é possível. Eu não estou a inventar nenhuma roda, mas estou a tomar conhecimento da roda, a aplicá-la na minha vida para melhoramento pessoal, e a partihar esse conhecimento da roda com outras pessoas que o podem utilizar se assim entenderem.

 

Este processo de reconhecimento, desconstrução e reconstrução do Ego é muitas vezes necessário para a cura de traumas, desbloqueio das emoções negativas por si despoletadas, que ficaram encapsuladas e que provocam os mais diversos problemas de saúde mental, e resignificação de tudo isso. 

 

É importante percebermos que o Ego faz parte da nossa psique, é uma parte de nós, não a devemos renegar, aliás, é humanamente impossível. Mas nós não somos o nosso Ego. Em processos terapêuticos, por vezes há coisas tão enraízadas e tão prejudiciais, que é preciso haver um processo de morte e renascimento do próprio Ego.

 

Fazer este tipo de partilhas num blog público - uma espécie de journaling que qualquer pessoa pode ler - tem também outro efeito, o de eu enfrentar os medos do meu Ego. Os medos do "o que vão pensar de mim". Na realidade, se eu tirar esse filtro, o que os egos dos outros pensam do meu, não tem razão de ser para me assustar. Tenho sentido que preciso de coragem para clicar no botão "Publicar" e considero isso uma forma de controlo do meu Ego e dos seus medos infundados.

 

E mais uma vez, neste como em outros temas, é um processo que acredito ser life-long.

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