O tema do Ego, do porquê da sua
existência, e da sua desconstrução como via para o melhoramento pessoal, ao
mesmo tempo entendendo e aceitando que não é um monstro, que tem funções
importantes para a nossa sobrevivência, é um tema complexo pelo qual me tenho
interessado muitíssimo. É fascinante e todo o processo de ir para além do
Ego, ir mais fundo em todas as camadas que o compõe, explorando a profunda sabedoria de
desvendar seu domínio sobre nossas vidas.
O que é o Ego e como é que ele surge (o "vazio")
O Ego (teoria psicanalítica de Sigmund Freud) é aquilo que nós achamos que somos.
É a nossa identidade. É o ator principal no filme das
nossas vidas. O Ego é composto por memórias e crenças que formam a
nossa noção de realidade, do que somos nós e do que são os outros, e
desdobra-se nos vários personagens que desempenhamos nos vários ambientes que
frequentamos.
O Ego surge quando nos apercebemos de que somos uma entidade separada de
tudo o resto. De acordo com o psicanalista francês Jacques Lacan, o Ego surge entre os 6 e os 18 meses, quando o bebé
começa a reconhecer-se no espelho como uma identidade separada do espaço ou ar
que o(a) rodeia. É o início do desenvolvimento psíquico desta nossa vertente.
Há quem diga também que é nesse momento que começa "o vazio". Mas
isso é outro tema.
Não
conhecia esta teoria ou explicação. No outro dia, curiosamente, a Lia estava a
fazer poses ao espelho, depois de me pedir para lhe fazer uma trança. Antes,
ela apenas se olhava no espelho, agora faz poses. E, ao observá-la,
percebi que ali começava a desenvolver-se uma coisa no Ego dela: a
vaidade 😛
Uma
das coisas mais fascinantes que encontro na maternidade é ver em
primeira fila um ser a desenvolver-se para o mundo, do zero. Acho incrível.
E este tema do Ego, agora que estou a aprender mais sobre ele... Estou mais
consciente também em relação a ela. É deslumbrante poder ver este processo a
desenrolar-se à minha frente.
E,
mais uma vez, ajuda também ao processo de aprendermos a observar e a separar
aquilo que faz parte integrante de nós, mas não é tudo o que somos. Ao
observá-la a ela, observo-me a mim também.
A sua função e os seus mecanismos
É previsibilidade, é segurança, é o familiar, é o "é assim". A
sua função principal é proteger-nos. E como é que o faz? Através de pensamentos,
emoções, crenças, julgamentos e medos. O ego tenta proteger-nos
através do medo, como mecanismo de sobrevivência para recuarmos perante o
desconhecido. É, também, aquele que comanda a mente. Ele é que decide, porque o
integrou num determinado setting onde nasceu e cresceu, o que é aceitável e
não, o que é certo e errado, o que nos impede de sucumbir aos nossos impulsos
mais primitivos. É o mecanismo responsável pelo equilíbrio da psique.
Mas é, também, uma ilusão.
O Ego existe para nos ajudar a viver de forma mais ou menos previsível num
mundo que, de outra forma, seria caótico e demasiado estimulante para
conseguirmos absorver tudo. Também é ele que nos coíbe de matar outro ser
humano, usando este exemplo mais extremo, movidos por sentimentos de
raiva. No entanto, ao olharmos para o mundo com as lentes do nosso
ego, isso faz com que tudo o que acreditamos seja uma ilusão, pois já tem esse
filtro.
Os estímulos externos e a reação do Ego
Se tentarmos pensar nisto de uma forma pura, todas as emoções advêm
do Ego. Alguém nos fez uma crítica (mesmo que construtiva), e o nosso Ego
fica atacado. Alguém nos passou à frente na fila, e o nosso Ego fica ofendido.
Alguém nos elogia e diz que estamos a fazer um ótimo trabalho e o nosso Ego
fica cheio de orgulho. Alguém nos diz "olha, mas tens valor, não penses
que não". E o nosso Ego fica todo inflamado.
Sobretudo esta última, acontece-me muito. Quando alguém me elogia, ou
quando eu me auto-elogio, sinto logo o meu Ego a inflamar. Mas cada vez
estou mais consciente de que isso é um efeito altamente ilusório.
Sair das próprias emoções e observá-las não é apenas no negativo. O facto de começarmos a fazê-lo
também no positivo (do género "o ataque daquela pessoa não me define,
independentemente da reação do meu Ego, mas o elogio também não") é
muito desconfortável. Porque se entrarmos neste jogo, não conseguimos
só pensar que é uma estratégia para nos sentirmos menos mal. No fundo, acabamos
também por de certa forma renunciar ao que nos faz sentir bem (ou ao
nosso Ego). Fazê-lo de outra forma (só para o negativo) é no mínimo hipócrita.
É o que o Estoicismo defende, que sejamos moderados na experiência das
emoções, sejam elas negativas ou positivas, porque não passam de reações e
ilusões do ego, que são temporárias.
Então, depois de nos apercebermos desta realidade, não conseguimos
"desaperceber-nos", então, é um processo altamente doloroso e
desconfortável. Nunca mais ouviremos uma crítica ou um elogio da mesma
forma, pelo menos, é isso que tem acontecido comigo.
Quando entramos neste caminho, passamos mais a observar como esses
estímulos nos fazem sentir e realizar-nos de que eles são incrivelmente
passageiros e impermanentes.
O Ego no meu processo atual
Há dias em que me sinto forte e invencível. Sinto mesmo que sou a maior, pelos
mais variados motivos. E depois há outros em que me sinto uma m*rda. Os discursos internos negativos e positivos oscilam bastante.
"Ah e tal, mas isso acontece com toda a gente!".
Claro que sim! Mas a intensidade com que se vive, varia muito. E claro que,
tratando-se de experiências altamente subjetivas, eu não consigo ver ou sentir
a intensidade com que os outros sentem os seus estados emocionais, mas no meu
caso, estou em crer que são mesmo muito intensos. Porque quando estou triste,
embarco por caminhos interiores profundíssimos, e quando estou contente
(falando em termos muito simplísticos), fico com o Ego de tal forma que nem
acredito como é possível não me sentir assim sempre. É uma auto-confiança tão
forte, mas não é minha realmente... É uma reação do meu Ego a um qualquer
estímulo externo ou interno baseado nas minhas crenças do que é a realidade.
O que me tem acontecido ultimamente é que a minha consciência para este
tema abriu-se de tal forma, que nesses dias em que me sinto invencível,
não consigo evitar dar um passo atrás e relembrar-me de que essa
invencibilidade é completamente ilusória. O que me coloca no loop de
voltar a sentir-me em baixo, o que me faz relembrar que também essa
contra-ciclo negativo é ilusório.
Então, no fundo, é um processo - quase involuntário - de encontrar o
equilíbrio e reduzir um pouco a intensidade.
Tenho mixed feelings sobre isto, pois, ao mesmo tempo que
faz sentido enquanto conceito abstrato, eu gosto bastante da
intensidade com a qual vivo as coisas. Todas as coisas. O meu Ego gosta de
ser intenso.
Isto é a forma como me sinto hoje em relação ao tema, mas como somos seres
em constante evolução e construção (ou quem quer ser isso), amanhã não sei,
pode ser outra coisa qualquer!
A Desconstrução do Ego - Transcendê-lo e Domá-lo
O Ego não deve ser visto
como um bicho-papão, e é neste ponto que muitas vezes discordo da abordagem que
muitos autores de desenvolvimento espiritual, "gurus", facilitadores
de transformação pessoal, investigadores sobre o tema - lá está, os seus egos,
os egos dessas pessoas - defendem.
O que eu acho é que
devemos encarar o Ego como uma parte integrante do todo que nós somos.
Ao estarmos conscientes
daquilo que é o nosso Ego, e por consequência, daquilo que não é, abre-se todo
um novo portal que nos permite libertar dos seus confinamentos e explorar um
"eu" mais autêntico.
Ao estarmos conscientes
dele, estamos conscientes do impacto e influência que ele tem na forma como
conduzmos as nossas vidas, na forma como encaramos e lidamos com os
acontecimentos.
Primeiro, temos de
reconhecer que ele existe, pela via da auto-observação. Se realmente nos
dedicarmos a esta tarefa, se de forma consciente integrarmos este exercício no
nosso dia-a-dia, torna-se cada vez mais fácil perceber que parte de nós está a
falar, se é o Ego, se somos nós como um todo. Se desconstruirmos o "forte"
que o Ego ergue, se observarmos realmente as paredes dele, percebemos a enorme
ilusão em que temos andado a viver.
O reconhecimento e a
desconstrução do Ego não pode ser com o intuito de nos vermos livres dele, mas
sim, de o transcender e de o controlar até certo ponto. De reconhecer que ele existe e tem
as suas funções protetoras, mas não deixarmos que ele defina mais do que aquilo
que tem de definir. No fundo, mantermos a sua função protetora, mas não
castradora. Uma espécie de auto-manipulação.
Trata-se de abraçar ossa
interconexão e alinhar com nossa verdadeira essência, além das ilusões do Ego.
O domínio do ego, pela
via da sua desconstrução, é, eu diria, um dos passos primordiais para ganharmos
uma visão e consciência mais claras do que realmente somos, do que realmente
todos à nossa volta são, do que o mundo é, de que nós somos esse mesmo mundo. Abre
também uma maior capacidade de compaixão, empatia, e renúncia às verdades
absolutas. É o primeiro passo para o auto-domínio e evolução pessoal e,
consequentemente, evolução nas nossas relações (ou nas relações do
nosso Ego com os Egos de quem nos rodeia). Porque quando percebemos que
o que vemos nos outros são também os Egos deles, conseguimos ver a pessoa por
outro ângulo e realmente relativizar as atitudes nos Egos dessas pessoas que
provocam reações nos nossos Egos. No fundo, se encararmos a vida e as situações
como meras danças de Egos, conseguimos relativizar uma série de coisas que
nunca antes tínhamos sequer colocado em causa.
Afinal, como podemos
almejar mudar algo que não conhecemos com profundidade? Achamos que conhecemos,
mas esse "achismo" não passam das tais crenças ilusórias e verdades
que o nosso Ego nos convence que são verdades.
Existem várias formas de
desconstrução do Ego temporária - para posteriormente abraçar uma nova
realidade, ou novas possibilidades, baixando um pouco aquele filtro. Uma delas,
é a simples consciência de que falei. Outra são as experiências psicadélicas. Escrevi
sobre o tema aqui e aconselho a audição deste podcast. Felizmente, eu descobri que tive
experiências de dissolução do ego através da toma recreativa (mas segura) de
substâncias psicotrópicas, que tiveram um efeito completamente
transformador em mim, mas sem ter nenhuma consciência de tal, só anos
mais tarde me apercebi do que me aconteceu, que hoje apelido de trauma
bom. Na altura, eu já era uma pessoa muito aberta à experiência e
ao desconhecido, já tinha sensibilidade e curiosidade em explorar os mistérios
da mente, mas não com a clareza com que consigo ver hoje. Estou grata
a mim mesma por me ter permitido ter essas vivências e agora estar a
resgatá-las.
Porque é que eu estou a
partilhar isto
Eu acredito na velha
máxima "Sê a mudança que queres ver no mundo" (Mahatma Gandhi). Acredito
muito que se nos mudarmos a nós, estamos a mudar o mundo. Acredito
que qualquer pessoa que passe por um ou vários processos de transformação
pessoal, deve partilhar esse processo. Se é benéfico para mim,
será para outra pessoa que eventualmente leia isto. Porque eu também bebo da
sabedoria de outras pessoas que se interessam por estes temas. Em vez de ser um
agente meramente passivo, opto por ter um papel de ativismo neste campo, na
medida do que me é possível. Eu não estou a inventar nenhuma roda, mas estou a
tomar conhecimento da roda, a aplicá-la na minha vida para melhoramento
pessoal, e a partihar esse conhecimento da roda com outras pessoas que o podem
utilizar se assim entenderem.
Este processo de
reconhecimento, desconstrução e reconstrução do Ego é muitas vezes necessário
para a cura de traumas, desbloqueio das emoções negativas por si despoletadas,
que ficaram encapsuladas e que provocam os mais diversos problemas de saúde
mental, e resignificação de tudo isso.
É importante percebermos
que o Ego faz parte da nossa psique, é uma parte de nós, não a devemos renegar,
aliás, é humanamente impossível. Mas nós não somos o nosso Ego. Em processos
terapêuticos, por vezes há coisas tão enraízadas e tão prejudiciais, que é
preciso haver um processo de morte e renascimento do próprio Ego.
Fazer este tipo de
partilhas num blog público - uma espécie de journaling que
qualquer pessoa pode ler - tem também outro efeito, o de eu enfrentar os medos
do meu Ego. Os medos do "o que vão pensar de mim". Na realidade, se
eu tirar esse filtro, o que os egos dos outros pensam do meu, não tem razão de
ser para me assustar. Tenho sentido que preciso de coragem para clicar no botão
"Publicar" e considero isso uma forma de controlo do meu Ego e dos
seus medos infundados.
E mais uma vez, neste como em outros
temas, é um processo que acredito ser life-long.
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