"Quando alguém pode dizer, verdadeiramente, acerca de seus estados interiores e de seus atos: 'assim sou, e assim atuo', então terá alcançado essa unidade consigo mesmo, ainda que dolorosamente; pode assumir a responsabilidade de seus atos contra toda resistência. Reconheçamos que nada é tão difícil quanto suportar-se a si mesmo. ("Buscavas a carga mais pesada e te encontraste", Nietzsche.) No entanto, até esta realização dificílima será possível, se conseguirmos distinguir os conteúdos inconscientes de nós mesmos. O introvertido descobre tais conteúdos em si mesmo, enquanto o extrovertido os projeta em objetos humanos. Em ambos os casos, os conteúdos inconscientes determinam ilusões perturbadoras que nos falsificam, assim como às nossas relações com os outros, tornando ambas irreais. Estas são as razões pelas quais a individuação é indispensável para certas pessoas; ela não significa uma simples necessidade terapêutica, mas representa um alto ideal, uma ideia do que podemos fazer. (...) A ideia básica deste ideal é que a ação correta provém do pensamento correto, e que não há possibilidade de cura ou de melhoria no mundo que não comece pelo próprio indivíduo. Para dizer as coisas drasticamente: o homem que vive num asilo de mendigos ou o parasita nunca resolverão a questão social." - in Eu e o Inconsciente, Jung
Distinção entre culpa e responsabilidade
Uma das maiores lições que retirei no último ano e meio, e que queria aqui partilhar, é a distinção entre culpa e responsabilidade (que eu não tinha a mínima noção do que era). Foi uma distinção importante que aprendi a fazer. Há certas distinções que vamos fazendo na vida, que rodam chaves internas que a mudam por completo (hopefully, for the better!)
Foi o começar a perceber que tinha de sair do paradigma da vítima para passar a operar no paradigma da auto-responsabilidade. E uma vez que fiz essa transição, nem queria acreditar, honestly, como vivi tantos anos no paradigma da vítima, sem sequer me aperceber disso nem ter sequer a mais remota ideia do que era isto.
Essencialmente, a culpa é algo que nos estagna, que nos faz ficar no mesmo sítio, de termos culpa de algo que não temos ou de atribuirmos culpa aos outros (e por isso sermos vítimas dos outros e das circunstâncias), enquanto a responsabilidade é algo que nos impele à ação, acaba até por ser uma forma de liberdade interna porque quando temos responsabilidade, temos liberdade, temos escolha sobre a nossa própria vida.
No fundo, tudo se resume a esta questão (mesmo face às circunstâncias mais negativas, ou que percecionamos como mais negativas, e.g., padrões relacionais nos quais sentimos que somos a vítima):
"De que forma EU estou a contribuir para isto?"
(e consequentemente, de que forma eu posso mudar isto na parte que a mim me toca)
Isto não é, lá está, culpabilizar-me, não é dizer que tenho culpa da situação, mas sim, entender que em todas as relações (todas!!! se estivermos bem atentos, encontramos isto em todas as relações, sejam amorosas, parentais, familiares, de amizade e até de trabalho) existe um efeito espelho, um efeito de projeção de coisas que temos internamente e que estamos inconscientes delas e que muitas vezes só as conseguimos ver precisamente neste "espelho relacional". É pegar em qualquer situação ou relação (ou aspetos específicos dessa relação) que nos estão a incomodar e aplicar esta questão.
Há coisas que não são nossa culpa, mas são nossa responsabilidade mudar. Tudo começa, uma vez mais, com decisões e distinções internas. Por exemplo, eu não tenho culpa se me "tratarem mal" mas tenho responsabilidade de o permitir ou não.
O meu caso específico / Relação com a Raiva
Uma coisa na minha vida particular que tenho vindo, ao longo dos meses, a reparar, observar e refletir, é que a minha relação interna com a raiva impacta em muito a forma como a raiva nos outros me afeta. Eu simplesmente não suporto raiva nos outros. E quando digo raiva, não é que a pessoa esteja ativamente zangada ou a gritar comigo; não é essa imagem padronizada que temos da raiva. Não precisa chegar a tanto porque é realmente algo extremamente subtil e com muita nuance. Reparos excessivos, críticas não construtivas ou até que sejam construtivas mas que sejam ditas com um tom de raiva, enraivecem-me a mim. E o que tenho vindo a descobrir - embora tenha tido esta realização mas queira aprofundar mais o tema daqui para a frente - é que eu tenho uma relação extremamente negativa com a emoção raiva. Percebi que inconscientemente associo a raiva a tudo o que é negativo, nada de positivo ou construtivo, quando na realidade, a raiva pode ser extremamente útil e construtiva se for usada da forma correta; essa forma, ainda estou eu em processo de encontrá-a; de cada vez que sinto raiva, tento conscientemente evitar oprimi-la como sempre fiz, pois esse é um velho padrão que já não me serve, mas tentar encontrar uma forma de a processar e de perceber o que ela me está a comunicar (normalmente, que os nossos limites foram ultrapassados) e como a posso usar de forma construtiva para a minha vida. Ou seja, eu sempre tive este padrão de reprimir e oprimir a raiva dentro de mim e acabo por ter vários espelhos disto mesmo, nas minhas relações. E este espelho continua sempre a aparecer até que eu olhe com a devida atenção para esta questão.
E de que forma isto se relaciona com a culpa e a responsabilidade? Permissividade e limites
Em Julho de 2022, li o livro "Aprenda a dizer Não", de Nedra Tawwab, e foi a primeira vez na minha vida que tive contacto com este conceito de limites. Por incrível que pareça, com 32 anos eu não fazia ideia do que era isto. Tinha - e ainda tenho - uma enorme dificuldade em dizer não e em enfrentar conflitos em vez de os evitar. Nesta altura, tive um glimpse de tudo o que aqui escrevo, mas acabei por não aprofundar. Mais tarde, o que tinha lido neste livro foi fazendo cada vez mais sentido. Porque eu percebi que permitia que me tratassem de qualquer forma, permitia que me falassem de qualquer forma, não tinha standards absolutamente nenhuns em relação à forma como deixava que fossem comigo nas relações. Tinha uma imensa falta de limites e uma enorme permissividade que chegou a um ponto da minha vida e deixou de ser um mecanismo de defesa para passar a ser destrutivo.
O ano passado, consegui libertar-me de uma relação familiar abusiva e tóxica, porque finalmente rodei aquela chave: "de que forma eu estou a contribuir para isto?"
A forma como eu estava a contribuir para aquilo - daí, lá está, a minha responsabilidade naquela dinâmica tóxica - era permitir que continuasse a acontecer.
Eu não tinha culpa da forma como essa pessoa emocionalmente abusava de mim (e nada disto desculpa a atitude) mas tinha a responsabilidade, à qual, até àquele ponto, me tinha negado, de mudar isso.
Só eu podia mudar isso. E, por isso, mudei. Não foi de um dia para o outro, levou tempo, foi difícil, foi uma trabalheira do caraças, mas tudo começou com esta decisão interna: de que forma eu posso usar a minha auto-responsabilidade para mudar a situação? De que forma eu posso alterar as circunstâncias que são destrutivas para mim? Primeiro, era deixar de acreditar (sim, eu acreditava nisso, tinha mesmo essa crença enraízada) de que eu merecia isso. Depois de realizar que não, eu não merecia aquilo, o resto foi só ação.
A distinção mais importante que fiz nos últimos tempos...
... foi, portanto, precisamente esta. Só o facto de eu ter interiorizado esta noção de auto-responsabilidade pela minha vida, independentemente de tudo e qualquer coisa que se passou "lá para trás" que se possa imaginar e independentemente da forma de atuar dos outros, isso tinha um limite que tinha de ser imposto por mim. Ao dia de hoje, olho para o último ano e acabo por ver que me dediquei bastante a aprender e afinar esta arte de estabelecer limites, de respeitar os meus próprios limites e não permitir que me tratem de qualquer forma porque não mereço. A minha responsabilidade está toda aí, apesar de não ter a "culpa", e essa distinção, reforço porque nunca é demais, é ESSENCIAL neste processo.
Isto aumentou muitíssimo o meu senso de agência, de comando sobre a minha vida e emoções, e diria até, o meu nível de felicidade basal. Percebi que eu posso decidir como permito que me tratem e, ainda mais, como me sentir ou como reagir perante determinado estímulo. (por exemplo, a questão de eu ter apagado tudo o que tinha aqui no blog, foi uma reação de urgência, de me sentir insegura, etc., mas ao passo que antigamente eu diria que a culpa teria sido da situação em que me tinham colocado, o meu discurso passou a ser: esta circunstância aconteceu, não tive qualquer controlo sobre ela, e ESCOLHI agir assim, e agora ESCOLHI agir de outra forma).